Há três milênios, a Ilíada conserva intacta a sua capacidade de inquietar e comover, revelando a beleza, as contradições e a dor da condição humana. Este mês a reli – pela sétima vez – e ao terminar fiz uma torta de maçã. Há uma razão para unir essas duas tarefas. Eis as minhas anotações e recomendações para quem deseja ler o grande poema homérico.

Por que a Ilíada nos inquieta? Porque é o nosso espelho. Literatura, histórias narradas ao pé do fogo ou em livros, falam de nós, humanos, e dos nossos paradoxos. Desde a Antiguidade, Homero é professor.

Ler a Ilíada deveria ser uma espécie de ritual sagrado. Ela está além de uma simples sucessão de eventos e deve ser apreciada em múltiplos aspectos. Homero, artista supremo da motivação, jamais nos conta algo sem estabelecer uma elaborada conexão de causa e consequência. Da primeira à última linha, a narrativa dramática se desenrola até seu fim lógico.

Imite o poeta, um observador sereno da vida e das paixões humanas. Ouça-o a revelar as ilusões, as teimosias e os desvarios que levam às tragédias individuais e coletivas, os enganos que conduzem perda do discernimento e à ruína. Esse olhar penetrante nos oferece oportunidade de meditação sobre situações que nos afetam. Uma narrativa que nos encanta com as cenas de um mundo há muito perdido e nos convida a refletir sobre o que (e quem) nos move em direção a estrelas ou abismos.

Embora a ira de Aquiles seja o fio condutor da narrativa, o poeta nos permite contemplar honra, orgulho, desejo, manipulação e tragédia. Também nos desafia a encarar a mortalidade, explorando a inevitabilidade da finitude e a busca pela eternidade através da glória (kleos).

Você há de dizer que a Ilíada é masculina demais, sangrenta em excesso. E terá razão. Em seu curso férreo há descrições brutais e cenas gráficas da destruição dos corpos. Não são gratuitas. São advertências sobre a realidade crua da guerra, a fragilidade da carne e o horror compartilhado. Em contraponto, o poeta nos oferece metáforas que nos retiram imediatamente do campo de batalha e nos transportam para os cenários idílicos e cenas domésticas, onde a vida cotidiana nos surge atraente em sua singeleza. Ou nos põe como observadores da natureza, em sua grandiosidade e rudeza. Os símiles homéricos – 180 no total – retardam a ação e iluminam o momento presente, aprofundando sua cor e sentido. Note-os. Medite sobre eles.

Um dos momentos mais sublimes do texto é a descrição do escudo de Aquiles, forjado pelo deus Hefesto. Uma joia do artesanato homérico em que homem e natureza se fundem. Homero grava ali casamento e colheita, rios, sol, lua e as estações do ano, constelações e um microcosmo de contrastes: cidades em paz e em guerra, ordem e caos, dor e alegria. Eis a totalidade da vida e do universo. Aquiles carrega diante do peito o mundo que ele defende e simultaneamente destrói. Ao vestir sua armadura, veste o cosmos e tudo o que ele, em sua ira, esqueceu: dança, amor, trabalho, nascimento e a existência com suas lutas e prazeres.

No mesmo Canto 18, o poema menciona as Plêiades, Touro, Órion e Ursa Maior. Observe a precisão astronômica dos gregos da época: já haviam percebido que a Ursa Maior, uma constelação circumpolar, não se punha no horizonte. Ou, nas palavras do poeta, “a única a não mergulhar nas correntes do Oceano”.

Delicie-se com o ritmo e a sofisticada técnica narrativa de Homero, que construiu um poema coeso, no qual faz incursões ao passado e ao futuro. Em vez de narrar toda a Guerra de Troia, concentra a ação em na ira de Aquiles, inserindo outros eventos como episódios paralelos. Esse foco garante unidade e clareza. Parece simples aos olhos atuais, quando as experimentações literárias são abundantes. Mas lembre-se que isso foi feito há três mil anos, antes mesmo da invenção da escrita. Na Retórica, Aristóteles cita Homero como exemplo de linguagem eficaz, uso magistral da metáfora e fonte de persuasão. A retórica é a arte da persuasão. Note como os personagens homéricos empregam técnicas retóricas para persuadir uns aos outros. Isso sugere que Homero não apenas era um mestre da narrativa, mas compreendia profundamente o poder da palavra. Ouça a voz do poeta. Ele é tão hábil que por vezes esquecemos que está lá.

Homero inventou a descrição cinematográfica (ou há outro modo de definir a entrada triunfal de Apolo “chegando como a noite”, das rodas dos carros de guerra salpicadas de sangue a passar sobre os cadáveres, a agilidade das cenas de batalha ou Pátroclo levantando um troiano com a lança e atirando-o do carro?). Note a força dos discursos plenos de emoção, os lamentos de saudade e perda. E o que dizer da frase final “E assim foi o funeral de Heitor, domador de cavalos”? Há uma quietude natural após essa frase. Toda a vida e luta heroica de Heitor desfilam diante do leitor. Leio-a repetindo Shakespeare: “O resto é silêncio”.

Capture no coração a originalidade da cena de Aquiles tocando a lira e cantando os feitos dos heróis — o guerreiro em paz com a música e a memória; e de Helena, em sua primeira aparição no poema, tecendo uma tapeçaria que retrata a guerra de Troia: a arte contempla a si mesma.

“Ira” é a primeira palavra da Ilíada. Espinha dorsal do poema. E embora Homero logo nos avise que a ira de Aquiles trouxe incontáveis mortes, o que se observa é que a ira atinge outros além do herói. Deuses e mortais se engajam na fúria destruidora, surdos aos apelos dos que buscam o entendimento e a razão. Pagam o tributo do sangue. A ira de um alimenta a dor do outro, compondo um círculo vicioso de sofrimentos.

A epopeia começa e termina com o apelo de um pai. O primeiro, Crises, é repelido e desrespeitado, dando início à sequência de eventos trágicos. O último, Príamo, rei de Troia, é acolhido. É o único a romper a ira de Aquiles: beija as mãos do assassino de seus filhos e implora pelo corpo de Heitor. Mesmo após a vingança sangrenta, Aquiles não encontrara a paz. A morte de Pátroclo o consome. Vingou o amigo promovendo uma matança generalizada. Não satisfeito, arrastou e profanou o cadáver de Heitor, queimou doze troianos inocentes na pira funerária de Pátroclo e promoveu jogos fúnebres. E ainda assim, não dorme. A ira o devora. Então levanta-se em plena noite para arrastar novamente o cadáver de Heitor atado ao seu carro de guerra. A paz só desce sobre ele quando tem piedade de um pai que se humilha. A compaixão o redime e completa-se o arco narrativo de ira e perdão.

Esse Aquiles – que se mostra tão impiedoso – é o herói do poema. Em Homero há espaço para grandeza e bondade convivendo com momentos de fúria. Virtudes e imperfeições habitam o mesmo peito. Pátroclo é igualmente paradoxal: no campo de batalha é feroz e sangrento e em várias outras ocasiões é descrito como bondoso, manso e gentil.  O poeta nos oferece assim o grande espelho das contradições humanas: a mão que afaga é a mesma que apedreja.

Atente, ainda, para outros personagens: a prudência de Nestor, a bravura de Ajax e Diomedes, a astúcia de Odisseu. Diomedes, no Canto V, vive a primeira aristeia da Ilíada (o momento em que um herói, possuído por força divina, realiza façanhas sobre-humanas. Sua lança fere Afrodite e Ares, atravessando corpo e mito. O sangue dos deuses se mistura ao dos homens. Eis ali a mais pura tradução da fúria heroica: a glória conquistada à beira da loucura. Diomedes torna-se precursor de Aquiles: mostra o que o homem pode fazer quando o sopro dos deuses o atravessa, mas também é um prenúncio do perigo da hybris (a desmedida).

Um dos mais sagrados ritos gregos era o cuidado dedicado aos mortos. Na Ilíada, é notável o temor dos guerreiros de que seus cadáveres sejam profanados. Em várias passagens, heróis ameaçam seus oponentes prometendo não permitir que eles tivessem ritos fúnebres nos quais seus familiares pudessem lamentá-los. “Não me deixes ser devorado pelos cães”, suplica o agonizante Heitor. Aquiles não se comove.  Mas quando Príamo o procura, o herói chora. Reconhece o pai no velho rei e concede: “Ao luto devemos trégua”. Devolve o corpo e garante onze dias de paz. No décimo segundo, recomeça a guerra.

Há muitos detalhes que podem lhe distrair ou entediar na leitura da Ilíada. Fuja disso. Não se aborreça com os longos trechos em que genealogias e naus são descritas. Aquilo é uma reverência à memória. O “Catálogo das Naus”, no Canto II, é mais que um longo inventário dos chefes e exércitos gregos que sitiaram Troia. Tem função, sentido e valor simbólico. Está ali para registro. Homero enumera trinta contingentes, mais de mil navios e 40 cidades. Apresenta a geografia do mundo grego arcaico. Passe reverente por esse trecho (talvez o mais antigo do poema). É a primeira cartografia da alma helênica, um mapa cantado em versos e não coroado. Respeite o que está diante dos seus olhos acostumados à velocidade dos dias: você está contemplando o nascimento de uma identidade cultural.

Também não se prenda a anacronismos. Sim, as mulheres são prêmios de guerra na Ilíada, cadáveres eram saqueados de suas valiosas armas e cabeças de líderes eram exibidas. É o retrato de um mundo em que os ritos e costumes estavam organizados de outra maneira. Registro implacável da brutalidade humana na aurora dos tempos.

Prestes a terminar este texto, falemos de maçãs. Antes da ira de Aquiles, houve o fruto. Um dos mais famosos mitos gregos é o “pomo de ouro”, lançado por Éris, deusa da discórdia, com a inscrição “καλλίστῃ” (à mais bela). Hera, Atena e Afrodite disputam o prêmio. Zeus se abstém e entrega o julgamento a Páris. Hera promete poder; Atena, sabedoria e vitória; Afrodite, a mulher mais bela: Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta. Assim nasceu a guerra. Egos feridos e desejo de vingança fazem Hera e Athena serem implacáveis contra Troia. A maçã desencadeou o ciclo troiano.

Encerremos, então, com uma verdade: a Ilíada é desafiadora. Não serve a leitores preguiçosos. Exige atenção, entrega e um coração aberto a novas perspectivas. Aristóteles observou que Homero domina o inverossímil e faz o impossível parecer natural. Mergulhe nesse mundo de imaginação delirante, de deuses feridos, mitos vivos e heróis trágicos, tão semelhantes a nós. Enquanto houver humanidade, Homero será professor.

Texto: Sonia Zaghetto. Imagem principal: O julgamento de Páris, de Peter Paul Rubens.

Ilíada – Ficha técnica

Título Original: Ἰλιάς (Ilíada)

Autor: Homero

Estrutura: 24 cantos, com aproximadamente 16 mil versos em hexâmetro dactílico.

Ambientação: Décimo e último ano da Guerra de Troia.

Tema Central: A ira (mênis) de Aquiles, suas consequências e a humanidade em meio à guerra.

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O que é a Ilíada?

O nome Ilíada vem de Ílion (Troia). Primeira obra da literatura europeia, estima-se que a cadeia de transmissão da Ilíada se iniciou pela tradição oral, ainda na Idade do Bronze, um tempo em que a escrita mal florescia – era riscada em tabuletas de argila, tímida, e servia mais aos comerciantes que aos poetas. Sem ferro ou alfabeto, a humanidade temia os deuses, aspirava por eternidade e já cultivava a beleza da arte, fazendo nascer mitos e ritos, impérios, guerras e códigos de justiça e honra. Neste cenário pré-literário, os aedos (poetas, bardos) memorizavam os versos e, ao som de suas liras, cantavam o poema em cidades e aldeias, banquetes e festivais religiosos.

Somente por volta de 750 a.C a Ilíada ganhou forma escrita. Nela sobreviveram as “marcas” dos antigos aedos. São as fórmulas, repetições e epítetos que muitas vezes fazem o leitor contemporâneo estranhar o texto.

Na Antiguidade grega, Homero era reverenciado. Mesmo Platão (que n’A República faz uma severa crítica aos poetas) reconhece o papel do autor da Ilíada como o grande educador da Grécia. Menos moralista e mais analítico, Aristóteles elogia Homero como o maior dos poetas épicos, citando sua excelência na mimesis, habilidade na construção do enredo unificado e coeso e por seu domínio do “maravilhoso” e do irracional.

A Ilíada – o que você vai encontrar em cada um dos cantos

Canto 1: A ira de Aquiles

A Ilíada começa in medias res, no décimo ano da guerra de Troia. A razão da guerra é o príncipe troiano, Páris (ou Alexandre), ter raptado a belíssima Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta.  Quando o livro se inicia, o deus Apolo envia uma peste sobre os gregos (chamados então de aqueus, dânaos ou argivos) em punição à ofensa feita a seu sacerdote, Crises, que suplicara a libertação da filha Criseida e fora humilhado por Agamêmnon, rei de Micenas e comandante dos exércitos aqueus. Forçado pela assembleia dos guerreiros e pelos presságios do adivinho Calcas, Agamêmnon consente em devolver Criseida, mas, tomado pela ira e pela soberba, exige em compensação Briseida, a cativa e “prêmio” de Aquiles. Sentindo-se ultrajado e desonrado, Aquiles retira-se da guerra e jura não voltar a lutar até que os próprios gregos reconheçam o seu valor. Sozinho à beira do mar, ele chora e ergue as mãos para Tétis, sua mãe divina, pedindo que interceda por ele junto a Zeus. Tétis consegue que Zeus incline a cabeça, concedendo o seu desejo de que os aqueus sejam punidos até que Aquiles seja novamente honrado.

Cantos 2: O catálogo das Naus

Zeus envia um sonho enganoso a Agamêmnon, prometendo-lhe a vitória se atacar imediatamente Troia. Para testar o ânimo do exército, Agamêmnon propõe que todos retornem para suas cidades, e, inesperadamente, os guerreiros correm às naus, desejosos de partir. Odisseu (Ulisses), inspirado por Atena, intervém com eloquência e consegue restaurar a ordem e o moral das tropas, repreendendo os chefes e exortando os soldados à guerra. Segue-se então o célebre “Catálogo dos Navios”, que faz muitos leitores desistirem de ler a Ilíada: um extenso inventário poético que enumera os príncipes, povos e cidades gregas participantes do cerco. Em vez de considerar a leitura cansativa, tente vê-la como uma “geografia épica” do mundo helênico. Encare esses quase trezentos versos como um ato de fundação da memória grega. Nomes, cidade e rios são evocados pelo poeta.

Do lado troiano, também são apresentados seus chefes e aliados, destacando-se o líder do exército, Heitor, filho do rei Príamo, e os povos que o acompanham em defesa de Troia. O canto termina com os exércitos postos em movimento, e o som de suas lanças e escudos ressoando como ondas do mar. A guerra recomeça, mas Aquiles permanece ausente e os deuses interferindo constantemente.

Canto 3: O duelo de Páris e Menelau

Os dois exércitos se enfrentam. Páris, ao ver Menelau, recua, tomado de medo. Heitor, seu irmão, o repreende duramente. Envergonhado, Páris propõe resolver a guerra num duelo: ele e Menelau lutarão, e o vencedor levará Helena. Feito o pacto, as tropas se sentam e os dois adversários se armam. Das muralhas, Helena observa os heróis gregos com Príamo, em uma célebre cena em que ela nomeia e reconhece os chefes inimigos, como se fosse um “catálogo da beleza e da perda”.

O duelo começa: Menelau domina Páris, arrasta-o pelo e está prestes a matá-lo, mas a deusa Afrodite intervém e salva Páris numa névoa, transportando-o de volta ao quarto. A deusa exige que ela volte para o amante, e Helena, humilhada e relutante, obedece. O canto termina num silêncio tenso: o amor venceu, mas a honra foi ferida.

Canto 4: A quebra da trégua

Os deuses reúnem-se no Olimpo. Zeus provoca Hera, perguntando se a guerra não deveria terminar agora, já que Menelau vencera o duelo. Hera, movida pelo ódio a Troia, recusa a paz. Atena é enviada para romper o tratado. A deusa desce à planície disfarçada e convence o arqueiro Pândaro a atirar uma flecha contra Menelau. O tiro fere o espartano, e a trégua é rompida. Agamêmnon inflama os exércitos, passando entre os chefes e exortando-os à luta. É um dos grandes momentos de oratória da epopeia. O canto termina com o reinício da guerra em plena fúria, os exércitos se chocando “como ondas sob o vento”. A paz, que por um instante pareceu possível, é devorada pelo destino: a ira não é só de Aquiles, mas coletiva.

Canto 5: A aristeia de Diomedes faz sangrar o Olimpo

O canto começa com Atena insuflando coragem em Diomedes, que se torna invencível. O campo de batalha ferve: Homero descreve o clangor das armas e o lampejo dos elmos sob o sol. É o primeiro grande painel da guerra na epopeia. Diomedes lança-se entre os troianos com furor sobre-humano. Mata Pândaro (o arqueiro que rompera a trégua) e fere Enéias, filho de Afrodite. Quando a deusa tenta socorrer o filho, Diomedes a fere na mão, fazendo o sangue imortal (chamado ícor) correr. É a primeira vez que um mortal atinge uma deusa, e o Olimpo estremece.

Ferida e humilhada, Afrodite foge para o céu. Zeus a repreende: “As tuas tarefas são os amores, não a guerra.” O delírio de Diomedes continua. Ele enfrenta Ares, o próprio deus da guerra, que lutava ao lado dos troianos. Atena o guia, segura-lhe a lança, e o herói fere Ares no flanco, em outro feito impossível para um humano. Ares solta um brado terrível e sobe aos céus, queixando-se a Zeus. O canto termina com o campo juncado de mortos, o chão empapado de sangue, e a guerra em seu ritmo inexorável.

Canto 6 – Heitor e Andrômaca

Em meio à batalha, Diomedes e Glauco, antes de lutar, descobrem que seus avós foram amigos. Em sinal de respeito, trocam armas e firmam a fraternidade herdada: um raro momento de amizade em meio ao caos. Heitor retorna a Troia para pedir às mulheres que supliquem a Atena pela salvação da cidade. Encontra Hécuba, sua mãe, e depois Helena e Páris, repreendendo o irmão por permanecer afastado da luta e entregue aos prazeres.

Heitor encontra com sua mulher, Andrômaca, e o filho Astíanax. É o momento mais terno da Ilíada. Andrômaca implora ao marido que não volte ao combate, lembrando que já perdeu pai e irmãos. Heitor responde que preferiria morrer a ver Troia destruída, pois “sem honra não há vida”.

Ele sorri para o filho, ergue o elmo e se despede. É a primeira e última cena de Heitor com sua mulher e filho, marcada por dor, perda e senso de dever. Heitor e Páris voltam ao campo de batalha.

Canto 7: Heitor e Ajax se encontram no campo de batalha

Atena e Apolo decidem interromper a guerra e inspiram Heitor a desafiar um campeão grego para combate singular. Após sorteio entre os heróis aqueus, é Ájax, filho de Télamon, quem aceita o desafio. O duelo é grandioso e equilibrado, termina empatado. Ao cair da noite, interrompem o combate e trocam presentes: Heitor dá a Ájax sua espada, Ájax oferece o cinto. É um momento de respeito mútuo. Em seguida, os dois exércitos suspendem a luta para enterrar os mortos. Os gregos erguem um muro e uma vala em torno das naus; os troianos reforçam suas defesas. Os deuses contemplam o campo de guerra, e Poseidon se irrita com o muro erguido pelos gregos, símbolo da arrogância humana contra o mar e o destino.

Canto 8: Sem deuses no campo de batalha

Zeus convoca os deuses e proíbe qualquer intervenção na batalha: quem desobedecer será lançado no Tártaro. Ele pesa em sua balança o destino dos exércitos: a sorte dos gregos declina. A guerra recomeça, e Heitor conduz o avanço troiano. Os gregos são repelidos até seus navios, e só a chegada da noite impede a destruição total. Heitor convoca os troianos a permanecerem no campo, junto às fogueiras, aguardando o amanhecer para o ataque final. Do lado grego, Nestor aconselha enviar mensageiros a Aquiles, pois sem ele não haverá salvação.

Canto 9: A embaixada vai a Aquiles

Seguindo o conselho de Nestor, Agamêmnon convoca o conselho dos chefes e, desesperado, reconhece seu erro diante de Aquiles. Decide enviar uma embaixada para reconciliar-se com o herói. Os escolhidos são Odisseu, Fênix e Ájax – símbolos da prudência, o afeto e a força, que representam todos os apelos possíveis.  Os embaixadores tentam convencer Aquiles a retornar ao combate.  Odisseu oferece riquezas, terras e a promessa de que Aquiles poderá desposar uma das filhas de Agamêmnon. Fênix apela ao sentimento, recordando sua infância e o amor que os une. Ájax lembra ao herói que a guerra precisa dele. Aquiles recusa, inflexível.

Canto 10: Expedição Noturna de Odisseu e Diomedes

É noite no campo de guerra. O exército grego dorme, mas Agamêmnon e Menelau permanecem despertos, inquietos com a ameaça troiana. Reúnem-se os principais chefes e decidem enviar uma missão secreta para espionagem do inimigo. Diomedes e Odisseu se voluntariam. Do outro lado, Heitor envia Dolon, um corredor troiano, para observar o acampamento grego. Este é capturado por Diomedes e Odisseu e, sob promessa de não ser morto, revela os segredos do campo inimigo: as posições, os aliados e o acampamento dos trácios recém-chegados. Depois que tudo revela, é morto por Diomedes. Os dois gregos invadem o acampamento trácio e matam o rei Reso e roubando seus célebres cavalos brancos. Retornam ilesos ao acampamento grego.

Canto 11: Os gregos enfraquecem

Ao amanhecer, Zeus faz cair chuva de sangue sobre o campo como presságio de massacre. Agamêmnon  lidera o exército e vence vários guerreiros troianos. Mas, ferido, é forçado a deixar o combate. O mesmo ocorre a Diomedes e Odisseu, que são feridos. Os gregos enfraquecem, e Heitor, impulsionado por Apolo, avança. Aquiles observa de longe os feridos passando em carros e seu coração se divide entre orgulho e inquietação. Nestor visita o acampamento de Aquiles e tenta persuadi-lo a voltar à luta, lembrando-lhe do destino dos gregos. Mas o herói continua inflexível — a cólera ainda o governa. Os troianos avançam perigosamente até os navios gregos. Heitor se destaca como herói e líder.

Canto 12: O assalto ao muro

Sem Aquiles, os gregos se refugiam atrás do muro construído em torno das naus (o muro erguido no Canto 7). Heitor lidera o ataque, e os troianos, com ajuda dos deuses, investem contra as fortificações. Poseidon e Apolo discutem o destino do muro: ambos sabem que, após a guerra, ele será destruído pelo mar, pois nenhum monumento humano deve sobreviver à glória dos deuses. O combate se intensifica: os troianos rompem as portas. Heitor derruba o portão principal, abrindo caminho. Os gregos recuam para junto dos navios. O Canto termina com Heitor atravessando o muro: o inimigo está próximo .

Canto 13: Poseidon vai à guerra

Zeus se deleita observando o triunfo troiano e Poseidon, indignado com o favoritismo do irmão, decide intervir sem sua permissão. Em um momento em que Zeus olha para o outro lado, disfarçado de Calcas, o adivinho, Poseidon percorre as fileiras gregas, insuflando coragem e ordem entre os guerreiros aterrorizados. Sob sua influência, os gregos se reanimam e o combate ganha nova vida. Ájax torna-se o centro da resistência, enfrentando Heitor em duelos sucessivos.
A planície vibra: os troianos atacam como ondas, e os gregos respondem como rochedos em uma metáfora marinha que ecoa o domínio de Poseidon. O canto termina sem decisão clara: o deus do mar sustenta os gregos, mas a balança ainda pertence a Zeus.

Canto 14: O Engano de Zeus (Sexo no Olimpo)

Hera percebe que Poseidon ajuda os gregos e decide se aliar a ele. Faz um plano para enganar Zeus e manter seus olhos por mais tempo longe do campo de batalha. Ela ludibria Afrodite e consegue seu cinto, talismã do amor e do desejo. Hera então procura Hipno, o sono, e o convence a adormecer Zeus após o encontro amoroso. O plano é duplo: seduzir e silenciar o rei dos deuses. Vestida de esplendor e perfume, Hera vai até o monte Ida, onde Zeus a vê e o desejo o domina. Enquanto Zeus dorme, Poseidon retoma o controle da batalha: os gregos, inspirados, lançam um contra-ataque furioso. Heitor é ferido e retirado do combate; os troianos recuam.

Canto 15: O despertar de Zeus

Quando Zeus desperta, vê o caos e compreende o engano. Envia Íris e Apolo para restaurar a ordem e a supremacia troiana. Apolo cura Heitor, infunde-lhe nova força e reacende o ataque troiano. Heitor avança como o fogo que devora uma floresta.

Canto 16: A morte de Pátroclo

O Canto inicia com Pátroclo indo ao encontro de Aquiles. Vê os gregos sendo esmagados e implora ao amigo que volte ao combate. Aquiles, ainda ferido no orgulho, cede parcialmente: permite que Pátroclo vá à luta vestido com as suas armas, para que os troianos acreditem que o herói voltou e recuem. Pátroclo parte, implacável. Sob sua liderança, os gregos retomam o ânimo e empurram os troianos de volta às muralhas. Ele mata Sarpédon, filho de Zeus, um presságio terrível, pois o sangue divino começa a ser derramado em demasia. Encorajado pelo sucesso, Pátroclo desobedece à ordem de Aquiles e avança até as portas de Troia, onde o destino o espera. Apolo lhe retira as armas e em seguida ele é ferido por Euforbo, até finalmente ser morto por Heitor, que o golpeia e toma para si a armadura de Aquiles. Antes de morrer, Pátroclo profetiza a morte de Heitor. O canto termina com Heitor exultando, sem saber que sua própria morte se aproxima.

Canto 17 – A luta pelo cadáver de Pátroclo

A batalha se concentra em torno do corpo caído de Pátroclo. Menelau tenta defendê-lo, mas logo é cercado. Ájax chega para auxiliá-lo. Os troianos, liderados por Heitor, lutam para tomar o corpo e exibi-lo em Troia. Os gregos, desesperados, lutam para evitar essa desonra. Zeus envia Atena para fortalecer os gregos, enquanto Apolo ajuda Heitor. O corpo de Pátroclo é arrastado, resgatado, perdido e reconquistado. Ao fim, os gregos conseguem salvar o corpo, mas Heitor retém as armas de Aquiles e as veste.

Canto 18 – A ira de Aquiles e o Escudo

Antíloco leva a notícia a Aquiles. O herói tomba ao chão, grita, cobre-se de cinzas. Tétis, sua mãe, sobe das ondas e o consola, mas revela que ao matar Heitor, ele também selará a própria morte. Mesmo assim, Aquiles escolhe o caminho da glória. Ele sai para o campo e, apenas com seu grito, afugenta os troianos, que tremem ao reconhecer a voz. Tétis procura Hefesto para forjar novas armas para o filho.

Canto 19: O retorno de Aquiles

Aquiles convoca a assembleia. Diante de todos, Agamêmnon se reconcilia, atribuindo a discórdia anterior à loucura enviada por Zeus. O herói aceita as desculpas, mas está obcecado em vingar Pátroclo. Os presentes de Agamemnon são trazidos (ouro, escravas, cavalos), mas Aquiles os recebe com indiferença. Briseida é devolvida. Ela também lamenta Pátroclo, louvando sua bondade com ela.

Aquiles se recusa a comer sem antes vingar Pátroclo. Transfigurado, ele lidera os gregos em combate, devastando o exército troiano com fúria quase sobre-humana.

Canto 20: Os deuses lutam

Zeus, consciente de que nada mais deterá Aquiles, convoca os deuses e lhes permite intervir livremente.
O Olimpo se divide: Athena, Hera, Poseidon e Hefesto apoiam os gregos; Apolo, Ártemis, Ares e Afrodite, os troianos. A batalha torna-se um caos cósmico, onde homens e deuses combatem lado a lado. Aquiles entra no campo como fogo, abrindo caminho entre os troianos. Enfrenta Enéias, que é salvo por Poseidon; e Heitor, que Apolo protege e o arrasta para longe.

Canto 21: Aquiles e Escamandro

Aquiles continua a chacina, matando Licaon, filho de Príamo, e lançando-o às águas. O rio Escamandro (Xanto), indignado com o sangue e os cadáveres em suas águas, se ergue e enfrenta Aquiles. É uma das passagens mais potentes da Ilíada: a natureza se levanta contra o homem em fúria. O rio tenta afogá-lo, arrasta-o na corrente, mas Hefesto intervém, lançando fogo sobre as águas. Fogo e água se combatem. Aquiles sobrevive e continua sua matança. Os deuses também travam duelos entre si. Ao final, o campo está coberto de cadáveres.

Canto 22: A morte de Heitor

Os troianos recuam para dentro das muralhas, e Heitor fica sozinho diante dos portões de Troia.
Seus pais, Príamo e Hécuba suplicam que ele não enfrente Aquiles, mas Heitor se recusa

Aquiles surge no horizonte, terrível. Heitor hesita e então foge. Começa a perseguição mais famosa da poesia: três voltas em torno das muralhas de Troia, Aquiles atrás, Heitor à frente. Finalmente, a balança de Zeus se inclina e o destino de Heitor ‘e selado. Apolo para de ajudá-lo a escapar de Aquiles. Atena, disfarçada de irmão de Heitor, engana-o, prometendo ajuda. Heitor para e percebe que foi enganado. Ele atira a lança contra Aquiles, acerta o novo escudo forjado por Hefesto. Em resposta, Aquiles atira a sua, guiado por Atena: o ferro atinge o único ponto vulnerável no corpo coberto pela armadura: o pescoço de Heitor. O herói moribundo suplica para que seu cadáver seja devolvido em troca de recompensas e tesouros. Mas Aquiles, ainda possuído pela ira, responde: “Não falemos de pacto entre leões e homens.” Heitor morre, profetizando o fim próximo de Aquiles. O vencedor fura os calcanhares do inimigo, amarra-o ao carro e o arrasta na poeira, diante dos muros de Troia, enquanto Príamo, Hécuba e Andrômaca choram do alto das torres. O canto termina com o entardecer sobre a cidade, o corpo de Heitor sendo levado à tenda de Aquiles — um herói sem piedade, prisioneiro da própria dor.

Canto 23: O funeral de Pátroclo

A aurora nasce sobre o campo de batalha coberto de cinzas. Aquiles vela o corpo de Pátroclo, chorando junto a seus companheiros. Durante a noite, o fantasma de Pátroclo havia aparecido a Aquiles, pedindo-lhe que suas cinzas fossem unidas às do amigo após a morte. Este corta os cabelos (símbolo de luto e devoção) e promete festejos fúnebres dignos dos deuses. Constrói uma grande pira, sacrifica animais e doze jovens troianos, e incendeia o corpo de Pátroclo. Ao amanhecer, Aquiles organiza os jogos fúnebres: corridas de carros, pugilato, luta, corrida, arco e arremesso de dardo.

Canto 24: A realeza do perdão

Mesmo após os jogos, Aquiles não encontra paz. À noite, arrasta o corpo de Heitor ao redor do túmulo de Pátroclo. Os deuses preservam o corpo do herói troiano. Finalmente, Apolo intercede junto a Zeus, dizendo que a ira de Aquiles ultrapassou o limite. Zeus convoca Tétis e ordena que o filho devolva o corpo de Heitor. Em Troia, Príamo, o velho rei, é instruído por Hermes a ir ao acampamento grego. Carrega tesouros e parte sozinho. Ao chegar, ajoelha-se diante de Aquiles e beija as mãos que mataram seus filhos. “Lembra-te de teu pai, ó Aquiles, e tem piedade de mim.” Aquiles chora e promete restituir o corpo de Heitor. Os dois homens comem juntos: o inimigo se converte em hóspede. A cena final é o funeral de Heitor, em uma Troia devastada pela dor.

A torta de maçã de Afrodite

Assim como a Ilíada, de construção rigorosa (hexâmetro, fórmulas, catálogos, metáforas), a minha torta de maçã foi concebida como uma “téchne” nos moldes gregos. Ao fazê-la, repeti como um mantra: há de se atentar para proporção, sequência, temperatura, repouso, combinação de sabores. Doce e ácido se combinam como no poema épico. O equilíbrio entre a maçã ácida (usei a Granny Smith, verde) e a doce (Honeycrisp) espelhou as tensões épicas entre honra versus razão, cólera e compaixão. E, sem forçar demais a comparação, admita: a forma não lembra o escudo de Aquiles, um “microcosmo” em camadas?

Mênis, a ira é um forno que tudo transforma. Dominá-lo é a medida da prudência. Ao fazer a torta, criei epítetos para cada especiaria: maçãs divinas, canela fragrante, noz-moscada domadora do amargor, manteiga de ouro. Tente também.

Receita

Ingredientes

Para a massa

2 ½ xícaras (320 g) de farinha de trigo

1 colher de chá de sal

1 colher de sopa de açúcar

1 xícara (230 g) de manteiga sem sal, bem gelada, cortada em cubos

6 a 8 colheres de sopa de água gelada

Para o recheio

3 maçãs Granny Smith (a verde, mais ácida)

3 maçãs Honeycrisp (mais docinha)

¾ xícara (150 g) de açúcar

¼ xícara (50 g) de açúcar mascavo claro

2 colheres de sopa de farinha de trigo

1 colher de chá de canela em pó

¼ colher de chá de noz-moscada

1 pitada de sal

1 colher de chá de suco de limão

1 colher de chá de extrato de baunilha

1 colher de sopa de manteiga em cubinhos (para colocar por cima do recheio antes de cobrir)

Para finalizar

  • 1 ovo batido com 1 colher de sopa de água (para pincelar)
  • Açúcar cristal ou demerara para polvilhar

Modo de preparar

Preparar a massa

Misture farinha, sal e açúcar numa tigela grande. Adicione a manteiga gelada e, num processador ou usando ponta dos dedos, incorpore até formar grumos do tamanho de ervilhas. Junte a água gelada aos poucos, mexendo só até que a massa comece a se unir. Divida em duas bolas, achate em discos, embrulhe em filme plástico e leve à geladeira por 1 hora.

Fazer o recheio

Descasque, retire o miolo e corte as maçãs em fatias de cerca de 0,5 cm. Coloque-as numa tigela grande e misture com os dois tipos de açúcar, farinha, canela, noz-moscada, sal, limão e baunilha. Deixe descansar por 20 minutos. As maçãs soltarão um pouco de suco – é normal

Montagem

Abra um dos discos de massa entre dois plásticos. Ele deve ter cerca de 30 cm de diâmetro. Forre uma forma de torta de 23 cm deixando sobras nas bordas. Coloque o recheio (com o líquido que se formou). Espalhe os cubinhos de manteiga sobre as maçãs. Cubra com o segundo disco de massa (pode ser fechado ou em tiras trançadas, como eu fiz. Se for fechado, corte pequenas fendas no topo para o vapor escapar). Pincele com o ovo batido e polvilhe açúcar cristal.

Assar

Pré-aqueça o forno a 200 °C (ou 400 °F). Leve a torta à geladeira por 15 minutos antes de assar. Asse por 20 minutos nessa temperatura, depois reduza para 180 °C (ou 350 °F) e asse por mais 35 – 45 minutos, até que a crosta esteja dourada e o recheio borbulhando. Deixe esfriar pelo menos 2 horas antes de cortar, pois o recheio precisa firmar.

Recomendações finais

Ore a Afrodite para a torta assar direitinho. Sirva como se fosse um banquete dos deuses. E nada de ficar irado/irada se não der certo.