Em meio ao caos da mudança, vejo a máscara do Buda. Estava na estante dos livros de arte. Espio com cuidado. Tem uma trinca, bem no meio da testa. Caiu? Não sei, mas a rachadura está lá, visível, incômoda, indesejada.

Olho para os livros empilhados, a ordem evaporada, as caixas de CDs e DVDs doados, e penso na grande metáfora da minha vida representada na máscara de madeira. O rosto de Buda está trincado. Uma nova marca de existência, uma ruga funda que traduz inquietação e algum temor. Escuto meu coração que bate em descompasso e me pergunto o que me espera nos lugares que não são meus. Que houve comigo, pois já não acho paz?

Recorro a velhos amigos, uns senhores sábios – Sêneca, Epicuro, Buda, Krishna, Aristóteles. Eles me recordam as técnicas longamente praticadas: identifique os desejos, torne-os visíveis, examine sua natureza e controle-se perante eles. São passageiros, enganadores. O véu de Maya é sedutor, envolvente. E a sua mente é traiçoeira: ela vai lhe lograr, pois é especialista nisso.

Na noite quente do verão de Brasília, inicio minha dança com os amigos e com os sentimentos que se atropelam dentro de mim. É como aqueles minuetos antigos em que os pares se afastam e se aproximam, tocam as mãos e por um breve instante cruzam os olhares, onde mil promessas são feitas. E foi assim que os desejos e uma gente morta há milênios dançaram comigo. Cada um disputando um naco de mim. Criei coragem e olhei para dentro da minha alma angustiada. Que abismo. Mexi nas águas e deixei emergir algum lodo. Eis o que vi.

Percebi que mudar de país é abrir mão de coisas caras, peças raras, visões claras. Um expatriado geralmente acha que deixará atrás de si um país que, acredita, já não lhe cabe, seja por não mais suportar as mazelas morais ou a estrutura física deficiente. Também eu pensei assim. Mas descobri que o Brasil é cheio de armadilhas, esconde-se nas dobras da gente e, quando menos se espera, ele salta e se instala no peito. Fica lá, pinicando, provocando, deixando-se amar.

Sei exatamente o instante em que a armadilha me apanhou desprevenida. Foi no momento em que as malas ficaram prontas, os livros amados preparados para ser encaixotados e a casa vazia. Inesperadamente, notei instalar-se aos poucos aquele sentimento traduzido em uma palavra única, tão luso-brasileira: saudade. E antecipada. Agora, pesavam pouco a insegurança onipresente,a  corrupção desenfreada, a angústia diária de tantas tristezas em meu país. Eu queria a minha terra, com suas cores de luxo, seus aromas, sabores e texturas.

Inspiro profundamente e me dou conta de que, assim como o Caetano, também gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões – que também é a língua de Pessoa, de Florbela, de Cecília, de Rosa, de Graciliano e de Machado. Há um prazer imenso em dizer nossas palavras tão únicas. Cafezinho, anteontem, senhorinha, xodó, samba no pé, chamego, apaixonar. E as sonoridades? A-bó-bo-ra, repolho, pináculo, sobrinho, dançarino. Última flor do Lácio, esplendor e sepultura, cheia de sons nasais. É tanto ã, õ, ães, ões, ens que deixam os não latinos meio zonzos. “Um pão quentinho de manhã é trem bão, heim?”

Mas não é só o idioma. É o cheiro da terra da gente, as ardências dos verões, as chuvas torrenciais, as árvores daqui, os bichos de casa, as frutas suculentas e doces, perfumadas. É o modo como nos abraçamos, de corpo inteiro, afagando as costas uns dos outros. Volto a atenção para o minueto, agora quase um exercício de Raja Yoga, controlo a respiração e rotulo o fenômeno: apego. Como escapar a esse doce visgo, que me retém aqui?

A esta altura do minueto filosófico, Krishna sussurra no meu ouvido: “Os prazeres que vêm do exterior são manaciais de dor  porque têm princípio e fim. O homem que encontra satisfação, deleite e luz em seu interior é um yogue”. Sêneca balança a cabeça, concordando. Aristóteles me socorre, abraçado ao Buda, para me lembrar do meio termo e do caminho do meio, territórios nos quais as emoções são submetidas à autoridade da razão. Epicuro toma as minhas mãos e me pede para buscar o equilíbrio entre dores e prazeres. Imersa em  palavras gregas – euthymia (serenidade), sofrosine (moderação) -, vejo meu amigo Marcelo Suplicy (ele também um expatriado) surgir do universo virtual para me segredar, entre um travo de amargor e uma praticidade desarmante, como se desfez de 35 anos de livros, revistas e coisas queridas: “Minha vida agora é medida não em dias ou em saúde, mas em terabytes, o único vínculo com o meu passado. Está tudo digitalizado. Uma prova de fogo, mas libertadora” .

Aos poucos meu coração sossega, os batimentos se equilibram, a respiração volta ao normal. A última das malas ainda está aberta. Sorrio, aliviada, contemplando o abismo das emoções que ficou lá atrás. A trinca na testa do Buda é um alerta sobre minhas fragilidades. O rosto está calmo e pacificado como sempre, mas a rachadura é sinal inequívoco das grandes batalhas emocionais. Um troféu dedicado aos que lutam ainda para vencer a si mesmos, seus desejos e seus apegos.

A iluminação está bem longe de mim, mas os amigos mortos há milênios ainda fazem sua mágica. Furam o bloqueio do tempo usando o portal que chamamos livros e mergulham fundo no meu peito. Espalham o bálsamo de suas palavras até curar todas as dores, espantar os temores e inocular uma força imensa em mim.

Lentamente me ergo e ponho a máscara de madeira na mala. Será uma perene lembrança do dia em que eu estava em lágrimas mas as sequei depois de dançar um minueto com os desejos e uns velhos amigos.