Peço desde já, que não se escandalize, caro amigo, com o fato de eu narrar esta história como se desejasse ressuscitar os mortos. É que meu peito ainda soluça, órfão e sem lugar, desde o dia em que a perdi.

Ela era bela. Moça ainda, mui fresca em seus risos. Nascera em berço dourado.  Herdeira de terras pródigas, de generoso solo, onde a luz fez sua morada. Doces frutos suculentos, rebanhos de todo tipo, pomares banhados de sol.

Impressionava vê-la de manhã, percorrendo seus domínios, pisando areias tão claras, molhando os pés nas ondas daquele imenso mar-oceano. Trazia vestidos coalhados de pássaros, sombrinhas de plumas de bem-te-vi, de arara e de  tangará. Sapatos de couro de cobra nos pés, bolsas de jacaré no pulso fino. Nos cabelos flores raras, no pescoço jóias caras. De seus lábios saíam cantos de uirapuru e histórias de mães d´água.  E à noite se recolhia para rezar aos seus deuses. Entre os seus, descuidada do futuro, cantava suas toadas, brincava com peixes-boi. Que mal sobreviria? Nenhum, por certo.

Mas um dia o viu chegar, em grande navio de madeira. Ele pisou na areia e a contemplou de alto a baixo. Viu-lhe o colar de esmeraldas, ouro enfeitando as orelhas, e sorriu com tal gosto que logo a arrebatou.  O coração tem segredos: une até os que não falam a mesma língua. Enquanto aprendia a fala dele, deu-lhe mimoso presente: um de seus muitos colares. Ele entregou-lhe um espelho, onde viu refletidos seu rosto de quase menina, seu corpo de curvas suaves. A partir de então, nas longas noites sem lua, descobriram um ao outro. Ele falava de sua terra distante, narrando guerras e sonhos. Ela ouvia encantada, mostrando suas doçuras e uns filhos de pele de cobre.

Ele a tomou sem aviso, sem perguntas ou pedidos. Logo estavam casados, ele era o dono da casa. Deu-lhe muitas coisas novas. Rendas do Nordeste alegravam-lhe a barra da saia, o cheiro do chimarrão lhe enchia as narinas e comia arroz com pequi (e pato no tucupi). Mas seu amor, tão exigente, tomou-lhe o ouro e os bichos, as madeiras perfumadas; e matou-lhe os filhos morenos. Agora, ela orava aos deuses negros, aos espíritos da floresta mas também a uns outros santos. No relicário, eles a abençoavam e seus olhos de vidro jamais a consolaram das tragédias que vivia. Ele lhe encheu o corpo de filhos, que eram seu amor e alegria.

Meninos crueis eram eles. Ávidos de seu leite, encheram a casa com suas tolices, sua crueldade de moços, suas brigas infantis. Pisotearam os tapetes verdes, rasgando o chão com brinquedos. Silenciaram no peito da mãe as canções de uirapuru, venderam as gemas que lhe ornavam os cabelos e rasgaram os vestidos de pássaros.

Ela pacientemente aguarda que eles aprendam a não tingir de sangue o leito do rios, que desejem cuidar dos bichos do mato, que plantem de novo o jardim. Quando desce a noite imensa –  sob um céu negro, negro, onde não há Estrela Polar, mas astros que se aninham sob a forma de uma cruz – ela pede aos deuses antigos e novos que os filhos cuidem dos primeiros irmãos e descubram a riqueza única de ter nascido naquele seu ventre tão pródigo, iluminado pelo sol do Equador.

Linda, linda era ela. E seu nome ninguém jamais soube. O que se dizia, entretanto, era que aquele amante estrangeiro a chamava de Brasil. Eu a chamo somente de Amor.


Pintura: Moema, de Victor Meirelles.