Eu adoraria ser uma lady, dessas olímpicas, meio Greta Garbo, ar glacial, sobrancelha arqueada de quem tem certeza absoluta de que jamais descerá do salto altíssimo para dar atenção ao jus sperniandi dos mortais. Mas não sou assim. Sou passional demais para ser diva gelada.
Muitas coisas me tiram do sério, mas minha ira alcança píncaros diante de tentativas de proibição de livros. A prática é antiga, obscurantista, autoritária e preconceituosa. Sim, porque parte do princípio que o leitor não terá discernimento ou inteligência para fazer um juízo crítico sobre o que leu. Quem proíbe livros julga que o leitor é estúpido demais para separar o joio do trigo e será presa fácil das ideias do autor. Ou seja: algum “iluminado” deve tutelar esse leitor desavisado para que ele não absorva ideias que ameaçam o pensamento vigente. Há também os que proíbem livros simplesmente porque eles contrariam as ideias de um grupo.
Foi assim que a biblioteca de Alexandria virou cinzas várias vezes, ou que a revolução cultural chinesa tentou apagar os registros da ópera e da medicina tradicional. Também partiu do mesmo princípio a inquisição católica que quis calar Descartes, Kant, Galileu, Voltaire, Giordano Bruno e Níkos Kazantzákis, cujo livro deu origem ao incompreendido filme A Última Tentação de Cristo. Assim também não sobreviveram os escritos da astrônoma e filósofa Hipátia de Alexandria. Jogue-se à fogueira corpos e livros – para que só sobreviva o que é considerado “adequado e bom” pelo grupo dominante.
Escrevo isso, claro, por causa da tentativa de expurgar o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, das escolas públicas. Alega-se que se está reintroduzindo racismo nas escolas (ora façam-me o favor!). Parece-me até meio óbvio e repetitivo dizer que várias gerações brasileiras leram Monteiro Lobato e não se tornaram racistas. Mas também parece-me mais um sinal inequívoco desses tempos em que se lê apenas o lead das reportagens, comenta-se com ares de autoridade o livro que jamais se leu e repete-se, feito papagaio bem treinado, o que está nas páginas da web.
Alguém disse que Lobato se referiu a tia Nastácia como “macaca” e os preguiçosos teleguiados acenaram com as cabeças repetindo feito ovelhas orwellianas “racista, racista” e danaram-se a sair espalhando pelos blogs e redes sociais que Lobato literalmente chamou tia Nastácia de macaca nas Caçadas de Pedrinho. A estes sugiro a leitura do livro (PDF aqui). Oh, surpresa, verão que o texto correto é assim: “Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida”. O que Lobato está fazendo, neste caso específico, é comparar a agilidade de Nastácia com a de um macaco. Como coincidentemente tia Nastácia é negra e ele utilizou a expressão “de carvão” para indicar-lhe a cor da pele (uma construção literária aceita com naturalidade à época), criou-se a celeuma. Registre-se, ainda, que em outra ocasião, Lobato usou a mesma expressão “macaco” para se referir à agilidade do branco Pedrinho em subir nas árvores.
Descontextualização é indício inequívoco de desonestidade intelectual. Por outro lado, ao ler Monteiro Lobato com olhos de século XXI recai-se no grave erro do anacronismo (saiba aqui do que se trata). É recomendadíssimo ao leitor honesto reconhecer Monteiro Lobato como um homem de seu tempo, expressando as ideias vigentes à época e com o estilo característico do período em que viveu.
É óbvio que, nos dias de hoje, a construção da frase citada soa inapropriada e deselegante, além de capaz de gerar interpretações dúbias, mas é suficiente para proibir o livro? Simplesmente apagar o passado é medida sábia? Ou estará mais de acordo com a opressão que deseja reescrever tudo em seus próprios termos? A riqueza da preservação de uma obra literária, dando-lhe o peso apenas de uma opinião vigente à época, é justamente a possibilidade que oferece de gerar reflexão sobre a mudança dos costumes e o refinamento das formas de expressão. No caso da obra infantil de Lobato, bons professores seriam capazes de extrair belos momentos de aprendizado, tanto do ponto de vista humano, como literário e histórico.
Vários monumentos literários e filosóficos que o ocidente idolatra defenderam ideias controversas ou francamente tolas, fruto de atavismos, orgulho exacerbado ou teorias esdrúxulas que lhe brotavam dos cérebros geniais. É forçoso vê-los apenas expressando o pensamento em voga na sua época e cultura – ou mesmo fruto de suas vivências e crenças particulares. Dessa situação não escaparam, por exemplo, Aristóteles e John Locke, ambos defensores da escravidão.
E o que dizer da coleção de crimes descritos e prescritos pela Bíblia? Estupro, incesto, assassinato? Está tudo lá! Aí é uma questão de coragem: bater em Lobato é fácil; quero ver quem vai pedir o expurgo da Bíblia, cuja leitura é recomendadíssima pelos tementes para formar bons caracteres judaico-cristãos.
Não contesto que Lobato tenha ideias que soam racistas em algumas de suas cartas e na obra adulta O Presidente Negro, mas ponha-se assim em perspectiva: mesmo que seja verdadeiro, ele é apenas um ser humano, um mamífero. Não se exija dele uma perfeição que não temos nós outros. Aristóteles – mente brilhante – forçou a mão na tentativa de explicar tudo o que via e produziu tesouros imensos, mas também deixou escapar “pérolas” como a que explicou por que serpentes não têm pênis: ora, porque não têm pernas! (Está aqui, sr. cético, no início do capítulo 7 do Livro I) E Crisipo, com suas pulgas tão úteis ao bom funcionamento do mundo?
Não vou ferir susceptibilidades mencionando as intrigantes teses de São Tomás de Aquino (ah, a Escolástica e suas belezas) sobre o perigo do incesto resultar em um surto incontrolável de relações sexuais por unir dois amores fortíssimos: o dos esposos ao dos irmãos; ou seu insuperável ranking que aponta a prática homossexual, o sexo com contraceptivos e a masturbação como “pecados” muito piores que estupro.
Mas voltemos a Lobato. Suas opiniões em cartas e obras adultas devem ser razão para condenar ao ostracismo sua riquíssima obra infantil? Uma obra capaz de estimular aquilo que mais nos falta hoje: senso crítico? Emília é uma atrevida, inconformada, que contesta tudo – uma mini musa inspiradora para quem cultiva o cérebro. Muito mais razões teriam os amantes dos livros para pedir a cassação de Paulo Coelho por crime de lesa-literatura, mas a ninguém ocorre – nem deve! – fazer isso!
A propósito, um dos contos mais famosos de Lobato, “Negrinha”, foi uma das obras essenciais para a minha formação libertária. Li Negrinha quando criança e a crueldade da sinhá Inácia, expressa naquele texto, foi decisiva para que eu refletisse sobre a maldade e o preconceito humanos. Graças a Negrinha (que você lê aqui) e a Lobato impregnou-se desde cedo, em mim, um verdadeiro horror à opressão e um amor pelos negros vítimas de preconceito e brutalidades. Lembro-me de haver chorado várias vezes diante do sofrimento daquela criança fictícia e de haver sonhado em libertá-la. Escrevi, ainda menina, um outro final para Negrinha. Nada realista, ao contrário, muito utópico, no qual eu a roubava da sinhá e a levava para ser minha irmã em nossa casa, onde lhe dava minhas bonecas e brincávamos no quintal.
Nutro desde então uma admiração ostensiva pelos cabelos encaracolados, pela pele escura, pelo timbre peculiar das vozes e pela incrível beleza do porte de homens e mulheres negros. Minha lista de favoritos inclui todas as divas do jazz e se tivesse de levar um só cantor para uma ilha deserta, seria Sam Cooke. E porque digo isso? Para me justificar? Claro que não! Para que fique bem claro que leitores de Lobato não se tornam racistas por lerem O Picapau Amarelo. Eu o li aos 7 anos de idade, sem tutelas.
Por fim, se vamos iniciar uma caça às bruxas à moda estadunidense, que também decidiu reescrever Mark Twain pelas mesmíssimas razões que se alega para reescrever Lobato, sugiro as seguintes providências iniciais:
1. Suprima-se da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o escravo Prudêncio, cavalgado pelo menino diabo na infância e que, liberto, passa a torturar um outro escravo negro.
2. Afaste-se dos olhos impolutos dos adeptos da teocracia estatal as menções ao amor homossexual que permeia a obra de Platão. Também é oportuno banir Platão por causa de sua opinião sobre os poetas.
3. Proíba-se Lolita, de Nabokov, por incitação à pedofilia.
4. Queime-se as obras de Aristóteles e John Locke que defendem a escravidão.
5. Apague-se para sempre qualquer resquício de A Arte de lidar com as Mulheres, de Arthur Schopenhauer, por crime de misoginia.
6. Vomite-se para fora do mundo La philosophie dans le Boudoir, do Marquês de Sade, por induzir mentes sensíveis a atos sadomasô.
Texto publicado em 13/09/2012 em Krishnachild Poetry (Clique para ver a postagem original)