Amor atravessou os jardins bem cuidados, saltou por cima dos canteiros e de repente viu a janela. Não era uma janela comum: estava encravada numa capela de pedra. Imensa, antiga. Tocou as paredes com a ponta dos dedos. Rochas largas, pesadas. Encostou o rosto nos vitrais e olhou para dentro. Deslumbrou-se: ouro, veludo, sedas brancas, vozes baixas. Chapéus, vestidos, tesouros. Umas jóias que brilhavam em pescoços de alvura e de contenção.
Os ferrolhos se rebelaram: não! Ele sorriu um pouquinho. Amor não é dado à força física. Também não aprecia alta voz. Conquista o mundo com o mel das palavras e uns olhos de mansidão. Os ferrolhos então cederam, resmungando indignados. Rangeram um bocado, mas conformados ficaram.
Amor sentou na janela e suas pernas sacolejaram sobre as flores lá embaixo. Fechou os olhos deliciado e deixou o sol tostar a pele das bochechas. Empurrou devagar os vidros e, num salto, zás, estava dentro da igreja. Uma nuvem de lembranças o atacou no caminho. De tempos muito longínquos, de reis que haviam odiado, de pescoços mal cortados, traições e sofrimento, cobiça, tragédia e morte, mágoas e fundos lamentos.
Olhou longamente as paredes e viu as bandeiras antigas. Cantavam hinos de guerra, falavam de honra e de sangue. Curvou-se à sua história, mas prosseguiu confiante. O ar era ainda abafado, as sombras tomavam as paredes e túmulos cinzentos reclamavam sua atenção. Pobres rainhas mortas, pobres reis sem oração.
Notou, em verde-limão, num banco de escura madeira, que Queen estava assustada. Não sabia se a coroa lhe pesava ou se era solidão.
Amor teve compaixão. Tantas gentes ali havia, rígidas, atormentadas. Trancadas em si mesmas, com suas glórias antigas, com seus laços de pedra. Ele as amou como eram, pela história que contavam, por seu peito engalanado de brilhos, medalhas e fitas.
Do outro lado da nave avistou uns outros homens, também eles infelizes. Traziam marcas profundas, de horror, de medo e tormenta. Abriu-lhes os braços em doçura, cobriu-os com mantos de flores. Beijou-lhes os pés maltratados, pôs-lhes bálsamos nas feridas. Amou-os a todos, inteiros, sem condição ou medida.
Silenciosamente abriu todas as janelas, de par em par. Deixou entrar um brilho de sol e um sopro do mais puro ar. Num gesto inesperado, de graça e de benquerença, pôs novamente entre os homens aquele seu predileto, King, um fabricante de sonhos.
A voz de King se ergueu, em meio à calma aparente. E cantou tantas doçuras que as pérolas choraram e os anjos de pedra da nave suspiraram entre sorrisos. Cada palavra sua, tecida com fios bondade, encharcou de beijos os homens e as mulheres da cidade.
Cantou sobre perdão, paz, conforto e recomeço. O passado então recolheu-se, como lição e história. Umas vozes coloridas se juntaram aos violinos. Pulsava uma nova vida, risos altos, oração. Queen, que a tudo isso assistia, sorria por dentro da alma. Olharam-se os dois longamente – King e Queen – tão diferentes. Estranharam os sotaques, mas decidiram afinal que deviam pôr no dedo aquele fino anel de ouro que chamamos redenção.
E eu aqui me despeço, depois de contar a história do dia tão belo de maio em que King e Queen se encontraram numa capela de pedra lá nas longínquas terras onde um bardo, meu amigo, viveu e cantou glória e miséria que agitam as almas dos homens.
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Imagem: Os Amantes. René Magritte .