O que dizer a quem já não é inteira? A quem teve uma parte de si arrancada, sem aviso, sem bilhete? Falam por aí que a pior dor desta vida é despedir-se de um filho, entregar o corpo amado à terra ou ao fogo. Estão enganados. Garanto que há infernos piores a espreitar um coração de mãe. Saber que o filho escolheu morrer é certamente um deles.

Os filhos partem, transidos de dor, incapazes de suportar a lida do mundo, a insanidade, a incompreensão. Descansarão? Terão encontrado a paz tão desejada? São mistérios que não ouso responder. O que sei – e isso é indiscutível – é que atrás de si deixam mutiladas. Após a partida, resta um corpo de mulher do qual algo se despregou abruptamente, abrindo abismos invisíveis, poços sem fundo, rombos na paisagem da alma.

Mutilação irreversível, todos sabem.

Nas longas noites de lágrimas, as perguntas são garras a espremer o sentimento. Sondam razões, repassam detalhes. Por quê? Perguntam-se na escuridão. E seus lamentos só elas ouvem.

Por que não vi? Repetem para si mesmas, num tormento que não permite tréguas. Demônio de olhos de fogo a espreitar as horas.

A dor é dada a lograr a gente. Para dela escapar, surgem vontades infantis e mágicas, como a de inverter a roda do tempo, numa cena de filme bobo, somente para evitar que a tragédia despeje seu cálice de amargores na boca que se recusa a bebê-lo. Trava-se os dentes, fecha-se os lábios, mas a mão implacável da realidade pressiona as bochechas e despeja cruezas garganta abaixo. Tem-se de engoli-las à força, contra toda vontade.

Enquanto escrevo, repasso mentalmente, pela centésima vez, a postagem da Helena: “A fluoxetina não deixa você ver, mas não precisa se desculpar pelo mal-entendido. Há momentos em que ela quase me engana também.
A cozinha cheira a bolo de laranja e café. Eu me sento e olho o céu pela grande janela da sala. As nuvens se agrupam inesperadamente neste julho no cerrado e eu ouço a música que ela me mandou ouvir. Give me the words, diz a moça com voz macia no ritmo de bossa nova.
Eu tenho um buraco no peito. Você não vê porque a fluoxetina não deixa, mas ele está aqui.
É julho e mais um aniversário se aproxima. Será um mês difícil, mesmo com a chuva fora de época, mesmo indo de novo ver o mar, com as ondas quebrando em mim.
Certas datas, minha amiga, meu amigo, nem com toda a fluoxetina do mundo”.

Um nó se instala na garganta ao ler isso. Meus olhos pingam dor alheia. Penso na Carmen, que leva coloridos vasinhos para um túmulo recente: “É lá, sentada no gramado que cobre seu corpo, que realizo a perda e converso diretamente com ele. Sempre peço que compreenda e me perdoe por não ter visto os sinais que estavam lá e só agora os desvendo, um por vez. Acho que se todos viessem a mim de chofre, não resistiria. Semana passada procurei um psiquiatra. Na próxima semana começarei a terapia. Por João, tenho que tomar essa providência. Pelas três crianças que ainda possuo, também. Por meu marido, por minha mãe, por minhas filhas e por mim mesma. Tenho o rosto deformado pelos nove meses de choro descontrolado, sempre sozinha para não contaminar a família inteira. Na frente de estranhos, a válvula fica aberta. Não ligo”. Engulo em seco diante de tal coragem.

Os dias vêm e vão, entre amanheceres esplêndidos e ocasos espetaculares. A natureza segue seu ritmo, indiferente às perfurações que trespassam os homens. Imutável mesmo só a bala que não mata, mas segue alojada no corpo, a exigir atenção.

Quem recebeu esta dura sentença sabe da dor que carrega, mas, ainda assim, considera um privilégio ter tido junto de si aquele filho que partiu tão cedo. Mesmo que por breves anos, são lampejos de luz no céu tão amplo. A generosidade das mães não cede um milímetro – nem mesmo à morte.

Cada alegria mínima é agora empanada pela névoa de uma saudade dilacerante. Sabem que, enquanto viverem, a sombra caminhará junto, mas aguardam que nos dias futuros haja algum bálsamo para aliviar feridas abertas e abrir sorrisos, mesmo que tímidos. Como chuva fresca no calor do verão. São braços estendidos, amigos que partilham dores parecidas, vozes solidárias. Um dia a mais, um medicamento a mais, um beijo novo. Pílulas, compaixão, solidariedade e o tempo a fazerem seu trabalho de costurar peitos rasgados.

Talvez, num dia de sol e brisas suaves, elas recolham seus meninos de volta aos úteros, onde permanecerão encantados, guardados de todo o mal. Treinam diariamente para isso, mantendo-os vivos em suas lembranças mais ternas, no mosaico das memórias mais risonhas, nos sons das festas de aniversário, com balões coloridos num salão decorado ou apenas bolo, Coca-Cola e torta de frango numa quitinete alugada; nas mochilas que ainda estão encostadas no quarto, nas fotografias guardadas como relíquias muito sagradas, nos netos e outros filhos que anseiam por elas.

Gosto de pensar nessas mulheres como aqueles vasos japoneses que, quando quebram, são colados com ouro. A marca da tragédia está lá, visível, cicatriz de alma que jamais será apagada, mas, ainda assim, o dourado metal do seu espírito indomável insiste em se sobrepor ao que se quebrou. Sobreviverão. Mutiladas, por certo, mas ainda lutando por si mesmas e pelos que caminham com elas. Em seus corpos quase despedaçados corre algo maior que a dor – mesmo essa dor que não há palavra capaz de traduzir.
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Nota da autora: Este texto é dedicado a Helena Silva, Claudia Steiner e Carmen Fagundes.

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Pintura: Le Dernière Heure. José Manuel Capuletti.