Um concerto de Páscoa numa catedral gótica localizada na região italiana mais atingida pela pandemia de coronavirus, a Lombardia. Em meio a um mundo atordoado pelos lamentos dos enlutados e pelo temor dos isolados, a música prometia sopros de esperança e de amor – um breve momento de paz, repouso necessário ao nosso cansaço.

Andrea Bocelli cantaria na catedral imensa, pela primeira vez vazia numa celebração de Páscoa. Só isso seria suficiente para tornar o instante um momento histórico e emocional. Foi além: tornou-se viagem visceral.

A câmera percorreu as ruas silenciosas de Milão, com a voz de Bocelli convidando todos, “na data em que se celebra a vida que triunfa”, a se unirem em um abraço ao coração pulsante do mundo ferido. Falou de renascimento e esperança.

Andrea Bocelli não se intimida perante a escuridão e a solidão. Soube domá-las. Ele e o organista do Duomo de Milão, Emanuele Vianelli, ocuparam cada espaço da catedral.

(Panis Angélicus fit panis hominum)

O pão dos anjos torna-se o pão dos homens. Poderia ser a origem da arte na Terra, mas são as inspiradas palavras de Santo Tomás de Aquino embaladas pela música de César Franck. E meus olhos se enchem de água. Penso na minha família, espalhada por cinco continentes. Revejo os amigos que acompanham o concerto comigo pelo Facebook. Vejo cada rosto amado, cada nome que chegou à minha vida.  

Silêncio. E surgem então as primeiras notas do cravo bem-temperado de Johann Sebastian Bach.

(Ave Maria gratia plena)

Instantaneamente, meu amigo Romariz, pianista, manda a mensagem: “Gounod propõe uma “meditação” sobre o Prelúdio 1 de Bach”. Sorrio docemente. E fecho os olhos. É que estou vendo minha mãe caminhando pela grande nave, vestida de noiva, indo ao encontro do meu pai. Sinto sua emoção igualmente a transbordar pelos olhos brilhantes. Vejo a mão de meu pai levantar o véu e depositar um beijo no rosto dela. Assisto ao casamento deles, esquecida de tudo o mais nesta terra fustigada.

Outra ária, as mesmas palavras. Mas é a Sancta-Maria, do Intermezzo da ópera Cavalleria rusticana, de Pietro Mascagni. Como não não lembrar as cenas arrepiantes de O Poderoso Chefão III? Reveladoras de toda a pujança da perda de um ser amado, uma dor a que nem os corações mais brutos escapam.

(Ora, ora pro nobis peccatoribus
Nunc et in hora mortis
)

Penso nos que partirão em breve. Eu também irei – apenas não sei quando. Mas sei que algo aprendi com minha mãe: a mala sempre está pronta para a “grande viagem”. Sem arrependimentos, sem pendências. C’est payé, balayé, oublié – diria a Piaf. Obrigada, mãe, por este ensinamento precioso.

Volto a atenção para Bocelli, que canta Domine Deus, de Rossini. Tia Celia, isolada em Indianapolis, e tia Graça, na Amazônia, elogiam a escolha do repertório. O mundo está tão pequeno. Milhões de seres humanos unidos.

A música termina. Silêncio na igreja em penumbra. A câmera mostra as esculturas impressionantes.

Andrea Bocelli leva 40 segundos para sair do Duomo. A câmera abre a imagem até enquadrar o homem minúsculo diante da catedral imponente.

(Amazing grace how sweet the sound)

Enquanto as palavras de John Newton ecoam, a câmera percorre as ruas desertas de Paris. Pontos turísticos, lugares sempre transbordantes de gente, agora quietos, envolvidos por uma bruma inesperada. A torre Eiffel, a ponte Bir-Hakeim, o arco do triunfo, as margens do Sena, lugares tão queridos. Em seguida, Londres. Calada. Por fim Nova York, abatida por mais de 9 mil mortes – mais de 700 nas últimas 24 horas. Ninguém nas ruas, onde ainda há cartazes do Rei Leão e de um show do Pearl Jam. Nossas marcas ainda estão aqui e ali, esperando.

Nós voltaremos.

Há 59 anos, o russo Yuri Gagarin se tornou o primeiro ser humano a ver a Terra a partir do espaço. Sozinho, numa nave silenciosa, contemplou a esfera azul, frágil, a viajar pela escuridão do cosmos.

“Através da janela, eu vejo a Terra. Vejo os rios e as dobras do terreno. Tudo é tão claro…”.

Hoje, durante alguns minutos pudemos olhar – com sentimento e alguma poesia – a casa planetária sem a nossa onipresença tumultuando tudo. Nosso lugar no universo parecia a mãe descansando um pouco, aliviada pela repetina quietude dos filhos ruidosos, que tudo destroem em sua infantilidade tola.

(I once was lost, but now am found; Was blind, but now I see)

Neste 12 de abril de 2020, refizemos de alguma forma o caminho de Gagarin a bordo da Vostok-1. E ficamos quietos enquanto alguém cantava para acalmar o coração ferido da Terra.

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Veja o que disse Andrea Bocelli antes do concerto

“No dia em que se celebra a vida que triunfa, estou honrado e feliz em aceitar o convite da cidade e da Catedral de Milão. Eu creio na força da oração em conjunto, creio na Páscoa cristã, símbolo universal do renascimento que todos – sejam ou não crentes – realmente precisam agora. Graças à música, transmitida ao vivo, milhões de mãos juntas em todo o planeta abraçaremos o coração pulsante deste mundo ferido. Esta maravilhosa forja internacional que é orgulho da Itália – a corajosa, generosa e proativa Milão – e a Itália inteira serão novamente, em brevíssimo tempo, o modelo vencedor de um renascimento que todos esperamos. Será uma alegria testemunhar isso na Catedral de Milão, durante a festividade da Páscoa, que evoca o mistério do nascimento e do renascimento”.