Temos o infinito poder de criar mundos particulares. De redenção ou caos, desespero ou esperança. As palavras atendem ao chamado. Basta escolhê-las.
Pode-se escorar a alma no cinismo, exibir o conhecimento adquirido com um olhar de desprezo e risinhos irônicos. Ou pode-se simplesmente baixar a crista e se reconhecer como um bípede cujas opiniões em nada mudarão o mundo.
Um bípede assustado, que tem medo de perder os amados, que teme pelo futuro e olha com agonia a expansão de um vírus desconhecido. E, ainda assim, é capaz de escolher as armas da coragem e da dignidade para ir à grande luta contra o obscurantismo que o cerca e, sobretudo, encarar a batalha consigo mesmo e seus fantasmas.
Há por aqui uma abundância de profetas do apocalipse, negacionistas em excesso, alucinados em demasia. Estão por toda parte: nas ruas e nas nossas timelines. A tudo invadem, nada respeitam. Querem impor sua opinião a todo custo. Não a mim.
Leio sobre ataques a médicos, ambulâncias sendo impedidas de trafegar, pessoas negando a existência de um vírus que paralisou o planeta inteiro, defensores intransigentes de idéias controversas e devotos de estranhos gurus. A impressão que se tem é que há mais loucos do que sãos à solta no país. Mas não é verdade. A ignorância é imensa e barulhenta, mas não é maioria; muitos de nós não se rendem aos apelos do populismo mais vil, não compram as teorias constrangedoras que os mercadores negociam em troca de trinta dinheiros.
Nada disso é novo. O mesmo fanatismo despropositado e voraz já estava presente sob várias formas antes da pandemia de Covid-19: os que se imaginavam detentores de toda virtude; os que fechavam os olhos aos desmandos de outros ídolos políticos, tão maquiavélicos e vis quanto os atuais; os que condenavam as vacinas; os terraplanistas.
Igualmente não são estreantes no planeta os que adoram uma história mirabolante. Sempre houve uma parte da humanidade muito seduzida pelo pensamento mágico e por carismáticos sem qualquer caráter; os que preferiram acreditar que a terra era o centro do universo; os que puseram lenha extra na fogueira que queimou Giordano Bruno e fizeram coro para Galileu abjurar; os que, há um século, comandaram a boataria e o quebra-quebra na revolta da vacina.
Nenhum novidade sob o sol, portanto.
Perante as atitudes bizarras dos que idolatram gente insana, de imediato lembro de Miguel de Cervantes. E repito baixinho: o problema não é a loucura do pobre D. Quixote, mas a atitude de Sancho Pança. De olho no cargo de governador da ilha, Sancho Pança se desapega da realidade e mergulha de cabeça nos delírios de D. Quixote. Segue-o por toda parte, apoiando as atitudes ridículas do mestre. Daí Cervantes defini-lo como “homem de bem, mas de pouco sal na moleirinha”.
Percebo que nos fanáticos contemporâneos a ambição lhes corroeu o corpo do discernimento. Destruiu a pele da civilidade, roeu-lhes as carnes do bom senso, até deixar os ossos brancos de indigência ético-moral. Estão agora em praça pública desnudos, descarnados, esfolados. Feios e expostos, tentam ainda fazer valer as suas opiniões exacerbadas, pois são ousados. Não vencerão. Há uma grande parcela de gente que os enxerga como são – sem retoques – e os rejeita.
É que ao lado da chusma de modernos insensatos caminham os homens de ciência, os que não se curvam às pressões, os que se sacrificam pelo bem comum, os que preferem os gestos de empatia e solidariedade às cenas de miopia política e surdez aos apelos do bom senso.
Não sou capaz de odiar os que perambulam escravizados pelas ideias alheias, a gritar como loucos da praça. Observo-os com a compreensão cautelosa que se deve ter com os intoxicados, com os que perderam a razão, com as vítimas voluntárias de ilusionistas.
O triunfo localizado e momentâneo da ignorância me envergonha, mas não me intimida. Recuso-me a ceder espaço a ele. Vigio-o de perto para que não me atinja, mas não o autorizo a pautar minhas horas ou me roubar a paz.
É que percorro um outro caminho, que me é muito mais conveniente: o de tentar preservar o que há de bom e nobre em mim, antes que eu seja arrastada por essa pandemia de fanatismo que emerge sem controle no Brasil.
Recorro à arte para falar dele.
No terceiro ato da ópera Andrea Chénier, de Umberto Giordano, Maddalena di Coigny está diante de Gérard. Conta que sua mãe está morta, sua casa queimada e ela vagou por caminhos sombrios, ameaçada por fome e miséria, perseguida de perto pelo perigo.
Em meio a essa dor veio até Maddalena uma voz cheia de harmonia: “Você não está sozinha. Eu recolho suas lágrimas. Tudo ao seu redor é sangue e lama? Eu sou o esquecimento! Eu sou o deus que domina o mundo e desço para fazer da terra um paraíso. Eu sou o amor”.
Amor é que o há para hoje. Prato sofisticado, apesar do nome desgastado. Vem servido sob a forma de mil gestos de solidariedade e afeto à disposição do cliente que o busca. Há um menu completo no noticiário e na vida diária. Basta escolher o foco e guardar algum sal para jogar na própria moleira – afinal dá algum trabalho manter a sanidade em tempos de peste.
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Ilustração: René Magritte. Le monde des images.
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Andréa Chernier é uma ópera baseada na vida do poeta francês André Chénier (1762 – 1794), executado durante a Revolução Francesa. A ária “La Mamma Morta”, que você ouve abaixo na voz de Maria Callas, foi o centro de uma antológica cena do filme Filadélfia.