Brasília amanhece com o canto dos pássaros. Aqui eles são muitos. Pardais, corujinhas, bem-te-vis, joões-de-barro e carcarás. E sempre tem um pôr-do-sol cinematográfico ou a lua que surge espetacular, tomando o céu e abrindo no peito dos homens uma enorme vontade de ouvir Villa-Lobos. Se ela está refletida nas águas do lago Paranoá, como evitar um suspiro comovido?
Quem mora aqui, sabe: a passagem do tempo é bem marcada. Não há dias, semanas, meses: há eventos. Tempos de bichos, de flores, de gotas ausentes ou ostensivamente inconvenientes. Há a florada dos ipês, que tingem de amarelo, branco e rosa as ruas da nossa cidade. E há o período de seca, em que a grama se torna marrom, as folhas despencam e o nariz da gente deixa escorrer um filete de sangue: Bebe água, menino! No céu, profundamente azul, nem sombra de nuvens vadias. Choveu! Onde? Ah, umas gotas em Sobradinho, nem chegou aqui!
Logo em seguida desabam as chuvas. Uns poucos dias depois das águas, o chão está verde-esmeralda. Um exército de insetos invade as casas. Mais alguns dias e nascem as cigarras. Cantam noite adentro, fazendo coros intermináveis. A gente espicha o olho pro horizonte em busca do azul, mas só vê nuvens. Chove, chove. Chove tanto.
Existe, ainda, um tempo em que os flamboyants pintam o chão de vermelho, as mangueiras parem frutos abundantes e os abacateiros vergam, grávidos. E se alguém caminha à noite pelas quadras, de repente se depara com um perfume que enche o ar: as damas-da-noite e os jasminzinhos! Estão por toda a cidade, ao alcance de um olhar.
Quando o dia começa a se recolher, a Esplanada se incendeia e o espelho d’água do Congresso reflete os vermelhos e dourados. O último suspiro do sol tinge o céu de azul-rosado e o povo emudece vendo as mãos de Turner pintarem ao vivo um novo quadro.
No fim da tarde, os evangelistas mergulham em brumas, a rodoviária fervilha, uma nova cidade aos poucos surge, iluminada por holofotes, faróis e a esperança de chegar cedo em casa.
Melhor que isso? Só quando um arco-íris estende seu tapete sobre a coroa da catedral e se junta ao caleidoscópio dos vitrais.
Mas Brasília carrega uma triste sina. Seu pecado original é ser o centro do poder decisório da República. Foi amaldiçoada, coitada! O restante do país elege 513 deputados federais e 81 senadores, envia-os para nós e muitos deles tramam o horror, em parceria com alguns parlamentares locais. Como determinam as leis da metonímia e da insanidade (esta última também recomenda chutar portas e cadeiras quando se tropeça nelas), o grande tribunal nacional condena a cidade. Incendeiem Brasília! Murem tudo e deixem todos os políticos morrerem ali! A gente tenta compreender: votar dá muito trabalho e pensar também não é fácil. Melhor apelar mesmo para as soluções fáceis e mágicas.
Uma segunda maldição Brasília recebeu ao nascer: quando se trata de protestar, converte-se em alvo perfeito. Depredá-la, pichar seus monumentos, queimá-la, cuspir nela? Um clássico.
Para nós, que aqui vivemos, resta engolir o choro, curvar a cabeça e lamentar que os prédios públicos – museus, catedrais e ministérios – arquem com a conta. Inocentes. Mesmo que ofereçam aos olhos o desenho suave de suas curvas de concreto.
E nosso olho se alaga de dor – aquele mesmo tipo de dor que surge quando vemos os fanáticos destruírem relíquias arqueológicas. É o tributo que pagamos por amar esta cidade.
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Feliz aniversário, minha Brasília. #60Anos
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Foto: Alexandre Romariz, professor da UnB, pianista, fotógrafo e meu amigo.