A man divine as myself is dead. – Walt Whitman
Ontem começou o mês de julho. Hoje seria exatamente a metade de 2020, não fosse este um ano bissexto. Já vivemos 183 dias deste estranho ano esculpido em cinzas. Há 60.713 brasileiros mortos e quase 1,5 milhão foram infectados. No mundo, dez milhões de seres humanos atingidos e meio milhão de vidas perdidas. Homens – divinos como todos somos – estão mortos.
Metade do ano vivido como se noite fosse. Seis meses passados entre paredes, testemunhando paradoxos. De um lado, vimos se degradarem as relações, crescer a intolerância e brotar em muitos os sintomas da mais abjeta arrogância. De outro, vimos surgir a compaixão pelos que sofrem, a solidariedade devida aos que ficaram sem trabalho, a dor compartilhada com os familiares dos mortos e o prazer da redescoberta de nós mesmos em meio ao silêncio e à solidão.
A pandemia poderia ter unido os brasileiros, criado um laço extra entre compatriotas, feito surgir uma poderosa cadeia de amparo, posto abaixo o rio de raivas que nos isola em margens diferentes da vida.
Teria sido a oportunidade de dar, aos mais jovens, exemplos coletivos de paciência, equilíbrio, dignidade e fortaleza perante a adversidade.
Poderia ter sido a hora de esbanjar estoicismo, grandeza, sobriedade e sacrifício. Quem sabe plantar a semente de uma futura união, como fizeram outros povos quando tocados pela tragédia.
Não no Brasil, onde tudo se torna razão de disputas e se ouve um eterno ranger de dentes infectado pela política mais rasteira, pela mesquinharia, pela corrupção e pelo populismo que sequer finge compaixão perante o sofrimento alheio.
Nação rica, eterna promessa, a pátria é mãe de Cains incapazes de superar orgulhos tolos, opiniões cristalizadas e “certezas” vaidosas.
Somos algozes e vítimas, simultaneamente. Fomos abatidos pelos que desafiaram a ciência, abraçaram a boataria, arrotaram supostas verdades na face alheia.
Atropelados fomos pelo egoísmo desenfreado, que desrespeitou o isolamento, prescreveu medicamentos embora fosse leigo, recusou-se a usar máscara, quis enriquecer ilegalmente em plena pandemia.
Até haver vacina, ninguém estará seguro – isso todos sabem. Ainda assim, há os que já não escondem a ânsia para retornar aos dias de hedonismo desenfreado. Escravos do imediatismo e do apreço à futilidade, abraçam a fantasia, indiferentes ao risco de infectar os outros, sobrecarregar os hospitais e causar a morte de muitos. Pagam com a vida e a saúde alheias o ingresso para a diversão em festas, praias e calçadões.
Nunca se viu tantas demonstrações de que a ética anda submetida à conveniência individual, aos caprichos de ocasião.
Sem mencionar os adultos esquecidos da arte da convivência agindo como crianças mimadas, desdenhando do valor imenso que é viver numa sociedade e num tempo em que se desfruta de liberdade de expressão e de imprensa, amplo acesso à informação segura e à ciência.
Homens e mulheres empenhados em destruir a reputação de quem pensa diferente ou, no mínimo, desapercebidos do significado do perdão e da polidez.
Sim, a economia não poderia ser congelada por tempo indeterminado. Mas, com calma, responsabilidade e trabalho conjunto já teríamos encontrado caminhos para retomá-la e minimizar o impacto da paralisação. Unidos, obedecendo ao bom senso, superando barreiras, teríamos cuidado mais uns dos outros, poupado muitas vidas e nos socorrido mutuamente.
Não aconteceu, infelizmente. E de nada adianta chorar sobre o triste passado. Foquemos, pois, no futuro.
Outros 182 dias virão. O que nos reservam? E se o céu insistir em cair mais um pouco sobre nós? Seus pedaços nos encontrarão com o coração revestido de pedra, ironia e orgulho?
Não se engane. Talvez venham mais ciclones, outros gafanhotos, novos desafios. Quem sabe dos tempos que ainda não chegaram?
Outros 182 dias virão. Que sejam mais leves. Mas, se não forem, que tragam consigo uma esperança decidida a reviver ou, no mínimo, nos encontrem munidos de coragem renovada, doses extras de racionalidade e a necessária calma para enfrentar tempos árduos sem aumentar demasiado as dores próprias e alheias.
Para receber esses novos dias, abra a janela e deixe soprar a brisa que vem do mar.
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Pintura: Andrew Wyeth. Wind from the Sea (1947).