Sonho todas as noites com o rio. Por vezes estou no fundo, a ver passarem os peixes. Em outras ocasiões, afogada, olhos abertos, entre fios de capim e seixos que rolam, o rio entra nos meus pulmões e suas águas são meu sangue. Eu sou o grande rio, manto líquido a navegar em direção a algo enorme e desconhecido.
Mesmo em Nova York, o rio me intimida e domina. Espia entre os letreiros luminosos da Times Square e ri-se do que me tornei. Ele sabe que ao fechar meus olhos, no apartamento, verei meu pai a pilotar a canoa entre os redemoinhos. O velho levanta o motor para evitar as rochas, usa o remo, esgueira-se das armadilhas. Sua testa se franze, pois sabe do perigo. A canoa percorre os canais, esquiva-se da correnteza. Logo adiante, a corredeira urra. Sinto que é um alerta para mim: não me desafie, criança. Eu obedeço.
Desde que me levaram para lá, a terra sagrada se infiltrou em mim. Comi seus peixes, suas farinhas, seus óleos. Tornaram-se meu corpo e meu sangue. Como Jesus Cristo se transmudando. Agora sou também essa mata que cheira a umidade, esses pássaros que piam sem descanso quando o dia chega, essas aningas brotando da água. Eu me aconcheguei a ela; ela se amoldou a mim. E não há força no mundo que nos aparte.
Criança ainda, pés descalços, eu via o dia surgir sob uma capa de neblina a cobrir as árvores altas. Névoa sobre as águas, sobre a mata, sobre os bichos. Vinha o sol e dispersava tudo. Meu olho se espichava em direção ao rio. Plácido e calmo, parecia ainda dormir.
Logo que o disco solar se fazia alto, surgia o calor. Avassalador, incapacitante. E o rio se tornava salvação. Abria os braços para recolher meu corpinho magro. Eu ia, com algum medo, a pensar nos mortos que ele havia levado. Estariam onde? Encantados no seu leito? Dormiriam e o rio lhes embalaria o sono? Ou permaneceriam assombrando os navegantes e as crianças?
Quando já me havia dado inteira a esse lugar, dele me retiraram. Suspirei de alívio. Eis a civilização. Folie, folie. Óperas, concertos, música de câmara, ballet, poetas, Shakespeare, Chagall. Imaginei que estava liberta de seu enredamento. Mergulhei no mundo novo e o bebi direto no gargalo. Desceu a me queimar a garganta, a deixar as pernas bambas e uma ressaca no dia seguinte. Nas festas, risos altos abafavam os sons das pedras rolando no meu peito. E se dormia, cansada de lutar contra o sortilégio, o cheiro da mata vinha me perturbar o sono.
Acordava de pesadelos longos, com gosto de frutas selvagens na boca. Cupuaçus, bacuris e camapus rolavam na língua, fiapos de pupunhas e tucumãs entranhados na gengiva, o sumo de um biribá a me escorrer pelo queixo. Faziam pulsar a muiraquitã na epiderme.
Sob a ducha pensava em outras águas e fechava os olhos para não ver coisa alguma.
Café da Starbucks e muffins de blueberry não me desagradam. Mas por que, ao colocá-los na boca, rebenta de repente em mim a vontade de comer beiju de índio ou açaí tirado na hora, rubro e grosso, com farinha de tapioca?
A obsessão me devora, implacável. Indesejável fantasma, desaparece! Na sala de reuniões, mordo as hastes dos óculos distraída. Ligo o piloto automático para responder obviedades. No meu notebook aberto, transporto-me para o meu mundo distante. Baixo a guarda e lá está ele, o cobertor verde a me chamar.
É hora do almoço. Peço peixe. Vem num prato branco, com pequenas ranhuras nas bordas. A descrição não fala a minha língua, mas a entendo: redução de balsâmico, tomates confitados e espuma de lima da Pérsia, além de zest de alguma coisa que não lembro. Como devagar e com elegância, enxugando os lábios num guardanapo de linho. O vinho branco é perfeito na boca, não no espírito.
Respondo algo ao interlocutor e desvio o olhar para um quadro na parede. Um mar profundamente azul me fala de outras marés. Elas se erguem dentro de mim, arrastando barrancos com a sua força destruidora. A água barrenta estronda, o rio ruge, arranca árvores, carrega o que está nas margens. Minha respiração se acelera. Mais vinho? Não, obrigada. Temo ter exagerado.
No meio da tarde, algo desliza por trás de minha cadeira e se enlaça no meu corpo. A moleza me faz tirar os sapatos sob a mesa. Mexo os dedos dos pés deliciada e então o vejo. Está assando peixes numa grelha fina. Arrumou uns galhos entre duas pedras e acendeu o fogo. Agora limpa a caratipioca, abre-lhe o bucho e retira as vísceras. Depois risca a pele com a ponta da faca, passa limão e sal. Observo de longe. Estou mergulhada em água morna e peixinhos miúdos me mordem os pés. Vem! O peixe está pronto! Olho para as águas, sem saber o que dizer. Elas se riem: te demos um filho; não é para alimentar teu corpo. Arregalo os olhos e saio do rio. Meus pés sentem a areia grossa e dourada. Sento no chão coberto de folhas úmidas e ouço uma velha cantiga ser entoada. Macacos e araras, mutuns e jacarés, onças e cotias escondidos no mato, a recitar feitiços novos. Eu os sinto, aguardando. O peixe na minha boca tem ligeiro gosto de terra. Posso senti-lo abrindo caminho pelas células, escondendo-se nas dobras da pele. Meus pelos se eriçam. Cavalo de Tróia, murmuro. Cavalo de Tróia, ecoa o vento.
No fim da tarde vou até a máquina de café. Olhos me seguem. Veem o salto agulha, as meias finas e a saia bem ajustada. A estagiária de cabelo azul me encara com algum desprezo. Sorrio para ela. Seus olhos se demoram na camisa branca que uso. Outras mulheres também me espiam, disfarçadamente. Têm esse hábito de analisar, comentar e comparar. Estamos sempre a competir, a nos vestir umas para as outras. Sei que registram o detalhe das abotoaduras masculinas na minha blusa, do tecido da saia, da cor vermelha na sola dos sapatos, como registraram a marca da bolsa largada na cadeira em frente à minha mesa. Elas me observam mastigar o cookie e sei que torcem para que eu tussa, me engasgue, fique vermelha, cubra a boca com o guardanapo e beba água até tudo passar. Vão desejar secretamente me ver ruborizar de vergonha. O que não veem é que sou uma velha tartaruga coberta de grifes e pele alheia. Nada aqui faz sentido.
O sol se põe sobre a paisagem de concreto. Sou uma silhueta diante da parede de vidro. Fujo outra vez para as cores liquefeitas de um dia longínquo. O espelho reflete o céu em fogo, japiins piam, ruidosos numa árvore imensa que se debruça sobre o rio. Piam, contando histórias antigas, piam a me chamar de volta. O desejo me vence.
Piso descalça as pedras escaldantes. A pele se arrepia inteira quando entro nas águas frescas e doces. Mergulho até o fundo, onde habita o silêncio. As águas entoam uma canção. Peixes-bois me fitam com olhos mansos, pescadas me contam segredos. Os capins que nascem entre as pedras são os cabelos verdes das iaras. São meus cabelos também.
Sobre a minha cabeça ruge a pororoca a assustar os homens. Nada temo. O rio me abraça e protege.