Para Fernanda Morishita
Perto da minha casa há um templo budista. Nele existe um jardim zen.
Não é um jardim imponente. Ao contrário: é magro, fica espremido entre o templo e um edifício feioso e retangular – e isso não parece perturbá-lo. Pequeno e simples, tem uma pontezinha japonesa, lanternas de pedra e árvores típicas do Japão.
É um jardim muito sábio. Ultimamente anda dedicado a me ensinar coisas. Eu não pedi, nem ele se ofereceu, mas ainda assim sua mera existência me traz lições.
Aproximo-me dele como quem ouve um poema. Tiro os sapatos porque o solo é sagrado.
Chego lá pouco antes do nascer do sol. Já é dia claro, mas o sol ainda está atrás das colinas que cercam o nosso vale. O jardim me espera, envolvido em silêncio. Lição primeira.
Ficamos juntos, eu e ele, calados enquanto uns passarinhos miúdos e furiosos dão rasantes para bicar os corvos. Assisto à batalha alada, rio baixinho. Lembro do mundo virtual e começo a desfiar nos ouvidos das plantas do jardim todas as ofensas, as agressões, as amizades desfeitas que testemunhei. Todas me ouvem em quietude. Sabem que preciso apenas afrouxar a correia que me comprime o peito.
O jardim a ninguém condena. Permanece o mesmo diante das misérias humanas desatadas. Ele aguarda que eu exerça meu juízo crítico mas aprenda a não sofrer com as escolhas e posturas alheias.
Reclamo ainda, ele ouve. Quem de nós passou perfeito e sem erros pela vida?, pergunta. Inclino a cabeça, aperto os lábios. Juíza rigorosa? Apenas para evitar a repetição do erro no futuro, não para flagelar os outros a fim de exibir superioridade.
O jardim está agora cantando uma canção: “Ame entre os que odeiam; viva em paz entre os violentos; nada cobice entre os ambiciosos”. Por alguns momentos, parece a cantiga do Hilton, meu professor de Yoga, a falar sobre o mergulho em si mesmo quando o tumulto exterior for muito grande.
Perdida nos meus pensamentos, por pouco não piso num elaborado desenho que alguém fez no chão. O jardim segura o meu braço no último minuto. Distraída com os outros, você quase pisoteou coisas bonitas. Atenção à caminhada, alerta. Peço desculpas, constrangida por quase ter destruído os delicados desenhos de carpas, folhas de lótus e a mensagem amorosa sobre o desejo de que a paz se espalhe pelo mundo. Tudo é aprendizado. Registre a experiência para o futuro, ele diz, com simplicidade.
Gosto do jeito do jardim me ensinar. Sem afetação.
Uma fontezinha despeja água sobre as pedras brancas do jardim. Perdem-se no interior da terra. Tudo passa. Impermanência.
Noto que a água não chega a alguns pés de agapanto. De imediato sinto um enorme desejo de pular o muro e encharcar a plantinha. O jardim não permite. Ele me lembra que um velhinho voluntário vem todos os dias arrancar as ervas daninhas e cuidar das plantas. Calma, ele vê o mesmo que você. Saiba se controlar: não é sua tarefa cumprir o dever alheio. Amanhã você, delicada e humildemente, perguntará ao jardineiro se ele precisa de ajuda para regar as plantas, sem ares de sabichona. Eu me acalmo.
Eu e o jardim agora estamos bem juntos. Ele me mostra que todos os elementos ali estão em harmonia. Seixos, árvores, flores e a fontezinha. Diferentes convivendo.
Sentada na mureta, cochicho que acho engraçada uma árvore em forma de sombrinha. Ele me diz que perco tempo demais observando os outros e devo voltar o foco para mim mesma.
“És o teu próprio Senhor. És o teu próprio refúgio.”
Por fim, encontro flores muito miudinhas debaixo da árvore-sombrinha. O jardim me diz para olhar de novo, bem de perto: e descubro que são cachos de muitas outras microscópicas flores. Nas coisas pequenas havia uma escondida beleza que eu, apressada, não vi.
Sobre o jardim, borboletas, abelhas e beija-flores. Ele aponta para mim: “Faz igual. Passa pela vida como a abelha, que suga as flores e se afasta, sem ferir a cor ou retirar o perfume”. Minha mente racional quer rir, acha que a frase é ” meio Paulo Coelho”. O jardim finge não notar minha cara de inteligentinha temerosa do julgamento alheio. Ele sopra uma brisa no meu rosto. Fecho os olhos.
Ao abri-los vejo Matsu, o pinheiro japonês. Está cheio de folhas jovens. Viverá pelos próximos séculos. Ainda estará aqui quando nada mais restar de mim. É um jovem senhor de braços fortes, que carrega nos seus galhos as futuras gerações de brotos.
O sol então surge. Seus raios iluminam tudo: o telhado do templo, as flores, a fonte, as lanternas, as árvores. Durante alguns segundos ele põe fogo nos meus olhos. Mal vejo o jardim. Escuto apenas seu riso manso:
Tudo é ilusão.
As citações entre aspas são do Dhammapada, o texto com os ensinamentos do Buda.
Fotos: Sonia Zaghetto
Que delícia começar meu domingo com um texto desses e vendo essas fotos. Obrigada.
Que a vida te retribua tudo de maravilhoso que você tem espalhado pela vida de tantos.
Beijos mil.
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Bom dia, Sonia. Ler esse texto delicado, sensível, é como recitar um mantra, ou orar…Meu Deus, que honestidade com teus sentimentos. ‘Pureza pura’ !Obrigada por me/nos levar por esse jardim contigo e nos ajudar a trazer esses teus sentimentos pra dentro de nós. Linda sempre você . Só posso pedir que Deus te proteja sempre. A ti e aos teus.Bjs no coração.
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Mais um texto suave, elegante e que que torna o coração da gente mais leve.
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Querida Sônia, queria te contar que fiz um PDF do seu texto e das fotos, para guardar para sempre junto de mim esse presente que me emocionou demais e me fez muito feliz. E também mandei o link para toda família! Obrigada, mil vezes!
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Minha querida Fernanda, que alegria ler a sua mensagem. Você merece o presente. Sua existência torna este mundo um lugar muito mais doce, ético, justo e bom. Um beijo!
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lá no face eu leio, aqui eu guardo. Já tenho um Rio e um Jardim todinhos pra mim.
Amo seus textos, Sonia . Bj Paula
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Bom Dia, e muito obrigada Sonia!
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