A criança recém nascida – uma menina – foi levada à noite pelo pai e pela tia. Colocada numa cesta, foi deixada no mercado da cidade, com uma cédula de dinheiro. O pai chorava muito e de longe assistiu à criança agonizar durante dois dias, sem que ninguém a recolhesse. Morreu com o rosto devorado pelos mosquitos, atormentada por fome e sede. O pai havia sido ameaçado pela mãe dele: a avó da menina disse que se suicidaria se ele não se livrasse da filha e garantiu que, antes de morrer, estrangularia a criança.

A parteira Huaru Yuan, 84 anos, carrega a culpa de ter feito aproximadamente 60 mil abortos e esterilizações forçadas. Algumas crianças eram retiradas do ventre das mães já inteiramente formadas e assassinadas a sangue frio. “Eu sei o que fiz. Aqui se faz, aqui se paga. Eu fiz muita maldade na vida. Não matei os bebês? O Estado dava a ordem, mas era eu quem a cumpria. Eu fui a carrasca”. Yuan busca desesperadamente por redenção. É a primeira a dar dinheiro para obras de caridade e hoje, aposentada, faz apenas tratamentos para casais inférteis. Sua sala está coberta de flâmulas de gratidão dos beneficiados. Ela cobra pouquíssimo, pois um monge de 108 anos lhe disse que cada criança que trouxesse ao mundo apagaria a morte de cem bebês que ela matou. Ainda assim, é visivelmente atormentada pelo passado.

Já uma outra parteira, Shuqin Jiang – condecorada e tida como cidadã exemplar -, lembra Adolf Eichmann ao repetir os slogans do governo para justificar os crimes que eram “seu dever”. Explica como venceu a repulsa: “Era uma guerra populacional; aquelas mortes eram inevitáveis. Nosso país teria morrido. Eu quis sair daquilo, mas os meus interesses não podiam se sobrepor aos interesses do Partido”.

Essas e outras histórias trágicas são consequência da Política do Filho Único, implantada na China para conter o descontrolado crescimento populacional. Teria evitado o nascimento de 400 milhões de crianças entre 1979 e 2015, segundo o governo chinês. Teria poupado ao país um gasto de 130 milhões de dólares em recursos (segundo uma propaganda de 1998). O custo humano dessa decisão, entretanto, é imensurável. Ele pode ser visto em um documentário disponível na Amazon Prime. One Child Nation, dos cineastas Nanfu Wan e Jialing Zhang, é uma história de tragédias e dores superlativas, de horrores ocultos e de lembranças torturantes.

A China atravessou o século XX atormentada por convulsões sociais e políticas: guerras, a revolução que abateu um império de dois mil anos e a longa consolidação e experimentos do governo comunista. Em 1978, ao chegar ao poder, Deng Xiaoping (1904-1997) enxergou uma ameaça malthusiana na crescente população de 1 bilhão de habitantes. O governo chinês decidiu implantar a Política do Filho Único – na qual as famílias eram proibidas de ter mais de um filho. A tentativa de conter o aumento demográfico excessivo tinha a intenção de afastar o fantasma da fome que havia flagelado o país graças às desastrosas medidas de Mao Zedong, evitar um colapso e impulsionar a China na rota do desenvolvimento.

Como fazer isso na prática? Como se poderia convencer jovens casais a não ter filhos? Como levar um bilhão de seres humanos a obedecerem sem questionar a medida que cassava um direito básico, envolto nos mais profundos sentimentos? A China o fez via propaganda – onipresente, maciça – e pela força.

O documentário revela detalhes da implementação da política e registra as consequências chocantes sobre os cidadãos.

Após o nascimento de seu primeiro filho, Nanfu Wang retornou à China para examinar o efeito devastador da política do filho único. Entrevistando amigos, profissionais de saúde e membros de sua própria família, em Jiangxi, revelou a violência dos métodos usados, as violações dos direitos humanos e os efeitos da doutrinação política que desumaniza e faz aceitar sem questionamentos as mais horrendas coisas.

A câmera de Wang registra rostos que sorriem enquanto narram tragédias, olhos atormentados, vergonha, arrependimento, frustrações e as mentiras que se conta a si mesmo para camuflar o horror diante do espelho.

A obediência cega resultou em mulheres terem o corpo violado nos abortos e esterilizações forçadas. “Elas enlouqueciam, gritavam, xingavam, tentavam fugir e se debatiam”, conta um antigo fiscal de aldeia. Casais que desobedeciam tinham as casas derrubadas. A propaganda vinha via televisão, rádio, espetáculos culturais, cartilhas escolares, outdoors e até cartas de baralho. Mesmo na zona rural, onde era permitido ter um segundo filho, a existência de mais uma criança era razão de vergonha.

O documentário também não se furta a mostrar o bem conhecido desprezo com que a sociedade chinesa trata as mulheres. No filme isso surge de duas maneiras: na violência que desaba sobre o corpo da mulher adulta e no descarte sumário de bebês do sexo feminino.

A tradição – que também ocorre na Índia e em outros países – é que a mulher, ao se casar, passa a integrar a família do marido. Já o homem permanece na família, dá seguimento à dinastia e cuida dos pais na velhice. Uma cena do filme é emblemática: “Meu filho tem a mesma importância que o filho do meu irmão?”, pergunta Wang ao avô. Resposta seca: “Não”. A cineasta não tem fotos com o avô, que guardava doces e se deixava fotografar apenas com os netos homens. O irmão dela, constrangido, revela sua tristeza ao saber que Wang foi forçada a deixar a escola e trabalhar para que ele estudasse.

A preferência por bebês do sexo masculino fazia com que as meninas fossem abortadas quando identificadas via ultrassom. Para os mais pobres, a solução era o abandono. Desejando evitar o “desperdício” de sua cota de um filho, as famílias abandonavam as meninas em ruas e mercados. A maioria morria ao relento.

Após algum tempo, os orfanatos estatais passaram a oferecer as crianças para adoção. Casais estrangeiros pagavam fortunas – entre 10 e 25 mil dólares – por uma criança. Os bebês chegavam até esses locais geralmente trazidos por traficantes, que os recolhiam em mercados e ruas.

O documentário traz o depoimento de um desses traficantes. Ele e sua família foram considerados a maior quadrilha de tráfico de crianças na China. Estima que entregou aproximadamente 10 mil bebês aos orfanatos e recebia em torno de 200 dólares por cada um. Passou seis anos na cadeia por isso. Ele revela que, antes dos orfanatos, as crianças simplesmente morriam. Ele os via em cestas e caixas ao ir para o trabalho. E se pergunta por qual razão só sua família foi punida, já que os orfanatos eram os verdadeiros comerciantes de bebês.

Igualmente chocante é o caso das crianças retiradas de sua família e vendidas para casais estrangeiros que as imaginavam órfãs. Além da dor de terem os filhos e netos raptados, as famílias eram obrigadas a pagar multas altíssimas. O jornalista Pang Jiaoming, autor do livro “The Orphans of Shao, foi o primeiro a denunciar esses casos. Foi demitido, seu jornal foi ameaçado e ele se exilou em Hong Kong.

Ao final, pairam no ar perguntas que jamais serão respondidas: uma delas é o que teria ocorrido se não houvesse tanta repressão. Deng Xiaoping foi também o condutor da abertura econômica da China. O sucesso dela e sua consequente prosperidade teriam desacelerado o crescimento populacional, como ocorreu em vários países? É fenômeno conhecido a opção por famílias menores à medida que se prospera materialmente.

A China extinguiu a Política do Filho Único em 2015 porque tem escassez de mão de obra. A população envelheceu e uma parte significativa da mão de obra que a substituiria foi eliminada. Por outro lado, há muito mais homens que mulheres, o que dificulta os casamentos, resultando em um exército de milhões de solteiros. As meninas chinesas adotadas no estrangeiro se tornaram noivas desejadas, mas desconfiam, pois teriam de abrir mão da liberdade que desfrutam em seus países. Sabem, ainda, que os jovens homens chineses são mimados – filhos únicos, criados com todos os cuidados de duas famílias, têm até nome especial na China: pequenos imperadores.

Agora está em voga a política de dois filhos. O rigor com que é aplicada a lei mais uma vez mostra que o Estado chinês reincide no equívoco de impedir os cidadãos de fazerem suas próprias escolhas. Lição não aprendida.

Sob Xi Jinping o regime tornou-se mais repressivo e repete o terrível erro de julgamento que resultou em tanto sofrimento e na normalização da brutalidade.

A dor de milhões de chineses encontrou um porta-voz em Peng Wang. O artista descobriu fetos em sacos identificados como “lixo hospitalar” num depósito de lixo a céu aberto. Fez da sua arte uma homenagem aos inocentes abatidos. Fotografou-os e guarda alguns deles em jarros, porque acredita que um país deve ter memória a fim de aprender.

No documentário, ele aponta para um dos fetos preservados, que parece ainda sorrir, e muito emocionado diz: “Eu me pergunto por que ele sorri, mesmo depois de ter sido morto. Creio que sorri porque é como se ele soubesse que seria triste estar vivo na China e estava feliz por ter evitado isso”.

O peso das lembranças amargas dos que viveram aquele período da história chinesa parece confirmar a tese de Peng Wang.