Para Miriam Murakami
Desde a antiguidade, monges e yogues escolhem a floresta para meditar. A quietude e o contato com a natureza por certo têm um papel importante para acalmar a mente turbulenta, afastar os sentidos dos desejos incessantes e favorecer a reflexão.
Na Floresta de Redwoods, na Califórnia, busquei o silêncio exterior para me fazer retornar a um ponto de equilíbrio necessário e algo fugidio nestes tempos árduos. Quatro horas de caminhada montanha acima. O trajeto solitário me ofereceu lições que recolhi com a humildade que se deve ter diante da natureza generosa. Respiração correta, atenção, persistência e auto-observação nortearam a jornada.
Houve instantes que hesitei perante o caminho estreito. Um passo em falso e viria a queda. Havia pedras grandes e pequenas pelo chão, raízes que se convertiam em minúsculas armadilhas. Tropeçar nelas poderia me atirar no abismo. Encarei isso como exata metáfora do meu viver. Se caminho com outros, minha falta de atenção pode arrastá-los comigo ao desastre. Se caminho sozinha, sou obrigada a lidar com os ferimentos ou encarar a morte solitária. Em ambos os casos estou por minha conta e sou absolutamente responsável por cada passo que dou. Redobrei a atenção à caminhada.
Andei entre árvores milenares. Estão aqui desde tempos imemoriais. Pinheiros, carvalhos e sequoias gigantes, com mais de cem metros de altura. Pele de árvore é fascinante. Rugosa, lisa, com cascas secas que se soltam ao toque, desenhadas por veios e ranhuras a fazer espirais em direção ao alto. Tenho por hábito sentir a textura de suas peles verdes. Gosto de imaginar a seiva fluindo como sangue vegetal e sentir a solidez de suas raízes a sustentar um conjunto formidável.
Minha mente condicionada viu sequoias dispostas em círculo. Algumas com raízes entrelaçadas. Uma irmandade que se dá as mãos em silêncio. Todas as lendas europeias, os contos de fada da infância, filmes e livros se juntaram para que minha imaginação as pusesse vivas quando nenhum humano está perto. Nas noites de lua cheia, serão irmãs que dançam com o vento, árvores bailarinas a espalhar sementes e bordar de folhas o chão? A imaginação é fascinante e, algumas vezes, perigosa.
Testemunhas dos séculos, as sequoias são lição esplêndida de paciência, serenidade e superação. Estavam aqui antes de Jesus Cristo, de Buda, de Sócrates, de Maomé e das pirâmides do Egito. Espalhadas por Redwoods, várias delas estão caídas ou queimadas. Seus corpos imensos e abertos – nos quais se vê as entranhas vermelhas – reforçam o lembrete de que tudo é impermanente. Mesmo os gigantes de três mil anos passarão. Nenhum de nós escapará à lei de finitude que faz parte do ciclo da vida.
Cascas grossas, curtidas pelo tempo, por vezes retorcidas, contam histórias dos séculos de trabalho da terra. Os grandes troncos falam de um longo tempo de maturação. Alguns, enegrecidos pelos incêndios, me segredam que venceram as dificuldades que a ninguém poupam.
Os incêndios são necessários para as sequoias. Pequenos cones cheios de sementes crescem perto da copa dessas árvores. Somente o calor ou os insetos conseguem abri-los. Até que o façam, as sementes permanecem presas (às vezes por vinte anos). O fogo seca as pinhas, permitindo que se abram e depositem as sementes no solo da floresta. Mil reflexões me ocorrem: vão da cooperação que devemos uns aos outros à adversidade forjando o caráter.
Sequóias são metáforas da Terra. Após os incêndios, elas se curam e ressurgem exibindo cicatrizes de negra resina, como troféus. Fazem do fogo que as ameaça um aliado para se fortalecerem. Imponentes, precisam dos miúdos insetos. Quase invencíveis, acolhem no poderoso tronco umas finíssimas teias de aranha.
Sigo. A jornada por vezes é sombreada e segura; e em outros momentos cansativa e imprevisível, sob o sol ardente.
Aqui e ali há galhos impedindo a passagem – desvio deles.
Curvo a cabeça ao passar sob uma árvore caída – teimosia só me daria um galo na testa.
Mais adiante, pedras cobertas de musgo – piso nelas com cuidado.
Borboletas, as California Sisters, voam sobre os regatos. Fico por alguns minutos completamente imóvel, ouvindo o rumor da água a abrir caminho entre as pedras. Pássaros piam em torno de mim. As borboletas vão até a copa altíssima das árvores. São indiferentes à minha presença: eu não as impressiono. Meu ego registra e aprende.
Fiz bem em ficar quieta: só assim pude notar o gaio azul de topete escondido na mata. A beleza estava em torno, mas eu não via, distraída com outras coisas. O belo pássaro me traz uma segunda lição: é um parente do corvo e extremamente agressivo com as demais aves, uma beleza enganadora e ardilosa.
Concluída a subida, surge a paisagem de um vale esplêndido. O esforço valeu a pena e estou com alma leve. Lembro de uma canção budista cujo poema foi escrito na China há mais de mil anos – O Templo de Hanshan. Bem à minha frente estão flores com ar de ressecadas e arbustos desidratados. Se estender o olhar enxergarei apenas as montanhas de Santa Cruz, um mar de pinheiros a se perder no horizonte. Levanto os olhos para a beleza arrebatadora das silhuetas verde-azuladas ondulando à distância, mas escolho também manter no campo de visão a pequena flor amarela. A vida é plural e sua riqueza me comove. A canção se ergue em mim:
Enquanto vejo a lua descer, um corvo grasna na geada.
Sob a sombra dos bordos, um pescador se move com sua tocha.
E eu ouço, para além de Suzhou, do templo da Montanha Gelada,
O sino da meia-noite tocando para mim, aqui no meu barco.
枫桥夜泊
张继
月落乌啼霜满天
江枫渔火对愁眠
姑苏城外寒山寺
夜半钟声到客船
Ouça aqui o canto budista Templo de Hanshan.
Este canto é baseado no poema Aportando à noite na ponte de carvalho, de Zhang Ji, poeta da Dinastia Tang (618-907). No poema, Zhang descreveu os toques dos sinos da meia-noite do Templo Hanshan quando ancora seu barco em meio ao ruído dos corvos e do pescadores. Uma pequena obra-prima de delicadeza, que traduzi para o português baseada na sensível tradução de Witter Bynne para o inglês. Localizada a cerca de 3,5 quilômetros da antiga cidade de Suzhou, a ponte de pedra em arco único atravessa o antigo Grande Canal de Jinghang. Versão instrumental.
Veja abaixo imagens da Big Basin Redwood Forest, na Califórnia.