Há três dias não brilha o sol. Nuvens densas e um tom alaranjado dominam o cenário. A fumaça que encobriu a luz dá a tudo uma cara de mormaço e traz frio ao verão da Califórnia. Nas ruas desertas, uma fina camada de fuligem desce do céu sobre casas, plantas e carros no estacionamento. Os pássaros deixaram de piar e um silêncio incômodo adormece o cotidiano.

Queimam a Amazônia, o Pantanal e a Mata Atlântica. Também ardem as florestas da Califórnia, Washington e Oregon, nos EUA. Tudo queima nestes dias de um ano que já amanheceu coberto por outras cinzas.

No Brasil morrem onças, macacos, tatus, tamanduás e cervos. Ardem os nossos tesouros de árvores centenárias, adoece a nossa gente. Na América morrem seres humanos, raposas, ursos, esquilos, castores e guaxinins. As milenares sequoias ainda não tiveram tempo de se recuperar dos incêndios devastadores do ano passado – não vão resistir desta vez.

Lá e aqui, a mão humana é fósforo e motor da tragédia que nos atinge. Aqui e lá se perde precioso tempo discutindo o assunto não com a seriedade que merece, mas sob o viés, os clichês e a superficialidade que parecem contaminar todas as coisas neste nosso tempo.

Tolos, tolos que somos. Se um incêndio atinge a casa, não interessa em que cômodo está o fogo: logo a catástrofe afetará a todos. Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne em seu mais famoso poema. No caso do meio ambiente, os danos ultrapassarão mares e fronteiras, pois que os ecossistemas da Terra se conectam em harmonia. As alterações climáticas nos afetarão a todos e conduzirão a sofrimentos perfeitamente evitáveis. Estamos confinados neste planeta – desnecessário lembrar que dele ainda não é possível fugir em caso de a atmosfera ficar irrespirável e a temperatura se tornar incompatível com a vida humana.

Esta semana tive uma amostra do que pode vir a ser o futuro e me perguntei como reagiríamos se tivéssemos de lidar com tal realidade por um longo tempo.

Rememorei a sequência de reações às recentes adversidades planetárias. Com a mente condicionada pelos filmes de apocalipse e viciados na espiral de estímulos, os humanos resistiram bem pouco ao cenário da pandemia. No começo, se eletrizaram pela novidade da covid-19, o confinamento e a proximidade da morte. Esvaziaram supermercados. Logo estavam emocionados pelo ineditismo das ruas vazias, a simbologia dos silêncios, o deserto no ambiente coletivo e as histórias dolorosas que emergiam das UTIs. Entre os que não foram atingidos, houve os que passaram a customizar máscaras, assistir às lives, fazer fotos de pães caseiros, dar demonstrações de afeto, tristeza e saudade, espalhar memes com álcool gel, além de brigarem devido à (dispensável) polarização de medidas governamentais, terapias e medicamentos. Em paralelo, a morte avançou sobre tantos. Oito meses depois, apesar das mortes e da perda que atinge milhões, os números a poucos impressionam e a parte expressiva apenas deseja a volta ao ritmo normal da vida, a qualquer custo. Estão visivelmente deprimidos, entediados, agoniados, irritados, cada vez mais agressivos e intoxicados pelas correntes ideológicas a que se vinculam.

Com isso em mente, observei a moda desta semana: o cenário marciano na Califórnia. O vermelho da fumaça dos incêndios florestais tomou a paisagem e converteu a Golden Gate em caminho de fogo sobre um oceano de lava. Emojis de susto, comentários criativos, montagens de San Francisco com a trilha sonora de Blade Runner. Mais uma vez a mente desejosa de novidade e romantização agiu. A experiência me diz que se tudo isso persistisse por vários meses, logo daria lugar a tédio, desgosto, maldições e à saudade de ver as antigas cores. Se demorasse por anos, que estragos faria à mente humana? A pandemia me ensinou que calma, união, resiliência, estoicismo e espírito coletivo são raros.

A lição, portanto, é foco no combate ao que causa tais problemas. Por autopreservação e por estar provado que não estamos preparados para lidar com catástrofes apocalípticas por prazo superior a poucas semanas.

Para além das fotos espetaculares no Instagram, a natureza arde no continente americano. Única e exclusivamente por nossa ação desastrosa e autocentrada. Estar em meio ao caos, garanto, é assustador. É duríssimo ver o inferno se materializar em chamas incontroláveis. Na vida real, a fumaça impede a respiração, testemunha-se o desespero dos forçados a deixarem suas casas, vê-se homens e animais lutarem pela vida, propriedades serem consumidas em minutos, árvores converterem-se em tochas e bombeiros sucumbirem à exaustão. Quando tudo acaba resta uma terra calcinada, esqueletos de florestas e o choro dos que tudo perderam. Dói.

Enquanto reflito na irresponsabilidade com que tratamos a questão ambiental, vejo pela janela um bando de corvos cruzar o ar. Gosto de corvos, talvez por causa de Edgar Allan Poe. Entretanto, hoje, a silhueta deles contra o céu opaco e alaranjado soa como um grito da Terra filmado por Hitchcock, uma advertência sombria sobre o local para o qual estamos conduzindo a nau planetária.

Vida e morte são escolhas possíveis quando se trata da questão ambiental. Estão neste instante ao alcance das mãos – tanto das que riscam o fósforo impunemente como das que votam, escrevem, assinam leis, elaboram uma política ambiental eficiente, participam das redes sociais alertando, esclarecendo, confundindo, contribuindo para a disseminação de teorias conspiratórias ou minimizando a importância da responsabilidade da coletividade perante a natureza que nos cerca e nutre.

Vida e morte estão na palma da mão, repito – é a escolha que temos.

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Foto: Ueslei Marcelino/Reuters. Um Sagui-de-Rondônia recém-nascido, morto após a mãe ser atropelada ao tentar fugir dos incêndios em Rondônia. Clique aqui para ver mais fotos de Ueslei na Amazônia ameaçada pelo fogo.

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Notas e links para reportagens:

  1. A Amazônia se tornou alvo de uma disputa ideológica e maniqueísta entre interesses diversos. A rigor, jamais recebeu adequada atenção de qualquer governante brasileiro desde a chegada das caravelas portuguesas. A prova são os dados do Orçamento Geral da União, a ausência de investimentos e fiscalização, o avanço do desmatamento e o fantasma de um zoneamento ecológico-econômico (ZEE) muito falado e que nunca se viu sair do papel, entre milhares de outras mazelas que jamais foram seriamente examinadas com vistas à solução.
  2. Os grandes incêndios na Amazônia estão ligados à atividade humana. A floresta úmida não queima espontaneamente. Há vários tipos de ação que fazem os incêndios se espalharem para as florestas vizinhas. Vão das criminosas (nas quais as árvores são derrubadas, deixadas para secar e depois incendiadas) às que são fruto de descaso e ignorância (quando as labaredas saem de controle após tentativas de eliminar ervas daninhas das pastagens ou a limpeza de áreas agrícolas).
  3. Agosto-setembro é o auge da estiagem na região amazônica e os incêndios criminosos ocorrem ano após ano, como revela a série histórica, sem que haja um plano para combatê-los.
  4. Um relatório publicado na quarta-feira (26/08) pelas organizações Human Rights Watch, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) mostrou que, em agosto de 2019, aproximadamente 3 milhões de pessoas de 90 municípios da Amazônia foram expostas a níveis de poluição do ar acima do limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS); em setembro, o número subiu para 4,5 milhões de pessoas em 168 municípios. O estudo calcula pelo menos 2.195 hospitalizações por doenças respiratórias relacionadas às queimadas, das quais 467 (21%) envolvendo crianças de 0 a 12 meses. Leia aqui o relatório publicado esta semana apela Human Rights Watch sobre o impacto das queimadas sobre a saúde da população da Amazônia.
  5. Com 30.901 focos de queimadas registrados por satélites no bioma Amazônia, o mês de agosto de 2019 superou o registrado no mesmo mês em todos os anos anteriores até 2010, quando o número chegou a 45.018. Os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora as queimadas desde 1998. O recorde para o mês de agosto ainda é de 2007, com 63.764 focos.
  6. Incêndios florestais – Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, saiba  as consequências das queimadas.
  7. E-book ‘Retomada Verde’. Baixe grátis! Entenda tudo sobre o movimento global que propõe reconstruir a economia de modo mais sustentável e como o Brasil e a Amazônia podem se tornar protagonistas desse tema no futuro.
  8. Extensão da fumaça dos incêndios no Brasil chegam a três mil quilômetros.
  9. Queimadas no Pantanal: avanço do fogo ameaça santuário de araras azuis.
  10. Queimadas deixam marcas profundas na Amazônia.
  11. Imagens impressionantes da California em chamas.
  12. ‘Fire-breathing dragon of clouds’: Formation over Creek Fire said to be biggest in US history.
  13. Purple haze: Air quality further deteriorates, as smoke-filled smog smothers Bay Area.
  14. Panic in Paradise: Nearby Bear Fire triggers locals who lost everything in Camp Fire to evacuate again.
  15. California fires: Five reasons why this year is so bad.
  16. Focos de queimadas na Mata Atlântica superam em 13% índices do ano passado.
  17. Pantanal arde em chamas.
  18. Ameaçada pelo fogo, onça-pintada invade casas e é resgatada em avião da FAB no Pantanal de MT.
  19. Incêndio no Pantanal ameaça maior concentração de onças-pintadas do mundo.
  20. Perícia afirma que incêndio no Pantanal mato-grossense foi intencional.
  21. A galeria de fotos abaixo foi retirada das reportagens acima mencionadas. Elas retratam a realidade dos incêndios no Brasil e nos Estados Unidos.