Os pés pisavam descalços a terra dos homens, das mãos caíam sementes que engravidavam o solo. A cada passo os campos se cobriam de brotos verdes e tenros. Logo o trigo estaria maduro e as ervas aromáticas tomariam o chão. Ao toque dos dedos de Deméter, os frutos amadureciam, enchiam-se de sumos. Ela sorria e os pêssegos instantaneamente se tingiam de rosa, as uvas escureciam, as maçãs avermelhavam.
De pé, contemplava os homens – pequenos, ignorantes – aprendendo a cultivar. Estes, quando ousavam erguer os olhos, encontravam os dela, tingidos de sabedoria da terra. Uma deusa a comandar plantios e colheitas. Tremenda.
Os olhos dela, vezes sem conta, se perdiam na distância. Estendiam-se para longe do reino dos deuses, muito além dos campos dos homens. E ao pousar na pele branca e nos louros cabelos da filha, convertiam-se em puro mel. Perséfone era seu néctar, seu sopro de vida. Um sorriso tocava seus lábios ao lembrar que Hermes, Ares, Dionísio e Apolo cortejaram a sua menina. Deméter os rejeitou – a todos eles – e escondeu a filha num campo secreto, onde floresciam todos os dons da natureza. Só Perséfone e as ninfas.
Ele surgiu num breve dia em que os olhos de Deméter se ausentaram. Abriu-se a Terra e ele desatou os ferrolhos do submundo. Dirigia uma carruagem e somente a força de suas mãos mantinha sob controle os cavalos que resfolegavam inquietos. Tão logo ele apareceu, as nuvens se fizeram de chumbo e a tempestade se tornou seu cortejo. Seguia-o como um cão adestrado, soprando ventos que dobravam as árvores. Ele dirigia veloz e sua ferocidade estava estampada nos músculos poderosos, nos cabelos revoltos, na dura linha do queixo.
Finalmente a avistou. Os cabelos se confundiam com os campos dourados enquanto ela se dobrava para recolher lírios, narcisos, ramos de trigo. Os imensos olhos verdes o fitaram e ela ergueu o queixo. A lendária beleza o tomou por alguns segundos, mas não mais que isso. Ele estendeu as mãos e a imobilizou pelos cabelos. O vestido rasgou, um grito morreu na garganta. A terra hesitou, mas obedeceu e se abriu num terremoto. As ventas dos cavalos soltaram labaredas. Em segundos, Hades desapareceu do mundo, levando Perséfone para o seu reino nas profundezas.
Lá, os cabelos dela escureceram, assim como seus olhos. Era agora a rainha do grande mundo dos mortos, coberto por três camadas de noite. Caminhava entre sombras, a ouvir os lamentos dos que habitavam o Tártaro, a escutar o pingar ritmado das gotas d’água nas grutas escuras.
A fúria de Deméter fez tremer a superfície. Desesperada, não mais comia ou descansava. Percorreu céus e os domínios de Gaia, investigou os oceanos. Suas palavras de loucura e ódio atingiram o solo que abrira a passagem para o mundo subterrâneo:
“Chão ingrato chão, que eu tornei fértil e cobri de ervas e grãos nutritivos: não mais terás os meus favores!”
Desafiou o próprio Zeus. Não voltaria ao Olimpo enquanto a filha não lhe fosse devolvida. Com mão cruel quebrou os arados, deu à morte os lavradores e os bois, tornou inférteis os campos e apodreceu as sementes.
Logo a terra se tornou estéril, nada germinava. Secava o trigo, as árvores não pariam. Poeira e aridez cobriam tudo. A fome atingiu os homens. Estes gemeram tanto que Zeus se compadeceu e determinou a Hades que devolvesse Perséfone. Ele concordou. O que havia entre eles, entretanto, são segredos dos subterrâneos e dos amantes. Dizem as lendas que ele apenas lhe estendeu uma romã. Ela olhou demoradamente para o fruto e pôs na boca as sementes vermelhas. Os lábios dele se abriram num riso de triunfo.
Deméter cobriu-se de papoulas para receber a filha. Mesmo à luz do dia, as tochas foram acesas quando ela chegou ao lugar do encontro. A um movimento da seda de seus vestidos, frutos, flores e grãos se derramaram sobre o chão e as águas umedeceram a superfície sedenta.
Perséfone emergiu das entranhas da terra. Os raios do sol imediatamente se entrelaçaram em seus cabelos e os olhos retomaram a antiga cor. A mãe a abraçou e o ar se encheu de perfumes de sálvia, tomilho e lavanda.
Hades se mantinha silencioso e sua expressão era indecifrável. Cochichou algo nos ouvidos de Zeus e este tocou de leve nos braços de Deméter. Quando a deusa se voltou, viu na palma da mão de Hades a romã, na qual faltavam seis sementes. A mãe deixou escapar um gemido. A lei determinava que quem comesse algo no submundo, ali deveria permanecer.
Um acordo foi feito. Seis meses com a mãe na superfície, seis meses com o marido no mundo subterrâneo. Perséfone tornou-se duas. Deusa de vida e morte, aniquilamento e ressurreição, promessas e desolação.
Quando ela desaparecia nas profundezas, nada brotava. O frio do coração de Deméter endurecia o chão, enregelava os galhos e fazia adormecer as sementes no fundo da terra. No império dos mortos, eram seis meses de calma. Perséfone sentava-se no trono de Ébano e reinava com Hades sobre fantasmas translúcidos. Os mortais a temiam e amavam. Evitavam lhe pronunciar o nome. Sabiam que só morreriam quando a deusa cortasse o finíssimo fio de cabelo que os ligava à vida. Perante ela, eram frágeis e pequenos. Sentiam que o poder dela era capaz de abatê-los a qualquer instante e em suas mãos havia uma taça cheia de água do rio Leto. Quando ela lhes estendesse a bebida, esqueceriam a vida que ficara para trás. Ao pensar nisso, estremeciam horrorizados.
Ao voltar à superfície, entretanto, trazia consigo a primavera, os grãos, o verde luxuriante, os brotos tenros. As flores retornavam, como as abelhas e os pássaros migratórios. Ela remoçava, tornava-se a adolescente delicada, de finos dedos a segurar violetas. Nas casas enfeitadas de guirlandas havia vinho novo e aroma de compotas. As moças colhiam ervas frescas e forravam de alfazema os travesseiros. Nos longos dias de luz, renovava-se a vida, lotava-se o celeiro.
As noites traziam ventos suaves e sabor de alecrim, murmúrio de chuvas e promessas de colheitas. Nelas se celebravam os mistérios de Elêusis.

O mito de Perséfone
O mito de Perséfone é um dos mais significativos da Grécia antiga. Oferece algo inédito: uma visão de vida eterna e o triunfo sobre a morte.
Deméter, a deusa que preside a natureza e a agricultura, tinha uma filha, Koré (virgem, moça jovem), sequestrada por Hades, senhor do submundo. Deméter a procurou pela terra inteira. Em vão.
As colheitas morreram, a fome se instalou, os deuses não receberam seu tributo costumeiro. Zeus determinou a volta da moça, mas Perséfone comera algumas sementes de romã. A lei do Olimpo determinava que se alguém comesse na terra dos mortos, permaneceria com os mortos. O fato de ela ter comido as sementes é interpretado como expressão de amor e da vontade da deusa de permanecer com o marido. Outros textos alegam que Hades a enganou.
Segundo o mito, Zeus determinou que Perséfone passaria metade do ano com Hades no submundo e a outra metade com sua mãe na terra. Quando ela está na terra, Deméter faz o mundo ser fecundo; quando está no submundo, as plantas morrem. O mito explica as estações do ano e, especialmente, reflete o conceito de transformação e a natureza cíclica da vida.
Os mistérios de Elêusis eram rituais de iniciação em honra de Deméter e Perséfone. Entre seus iniciados estavam Sócrates, Platão, Plutarco e, mais tarde, em Roma, o orador Cícero. Os rituais eram realizados duas vezes por ano: na primavera e em setembro. Platão menciona os Mistérios no Fédon, seu famoso diálogo sobre a imortalidade da alma: “Os nossos mistérios tinham um significado muito real: aquele que foi purificado e iniciado habitará com o deuses ” (nota 1).
Os Mistérios de Elêusis persistiram por mais de mil anos e, durante esse tempo, proporcionaram uma compreensão mais elevada da vida e da morte. Os rituais foram encerrados pelo imperador cristão Teodósio em 392 EC, que via os ritos antigos como uma resistência à mensagem de Cristo. À medida que o cristianismo ganhou mais adeptos e poder, os rituais pagãos foram sistematicamente eliminados, embora os significados centrais e alguns simbolismos tenham sido incorporados à nova fé.
Na antiga Roma, Perséfone era chamada Proserpina.
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Nota 1. Texto original de Platão: (Fédon, 69c-d):
κάθαρσίς τις τῶν τοιούτων πάντων καὶ ἡ σωφροσύνη καὶ ἡ δικαιοσύνη καὶ ἀνδρεία, καὶ αὐτὴ ἡ φρόνησις μὴ καθαρμός τις ᾖ. καὶ κινδυνεύουσι καὶ οἱ τὰς τελετὰς ἡμῖν οὗτοι καταστήσαντες οὐ φαῦλοί τινες εἶναι, ἀλλὰ τῷ ὄντι πάλαι αἰνίττεσθαι ὅτι ὃς ἂν ἀμύητος καὶ ἀτέλεστος εἰς Ἅιδου ἀφίκηται ἐν βορβόρῳ κείσεται, ὁ δὲ κεκαθαρμένος τε καὶ τετελεσμένος ἐκεῖσε ἀφικόμενος μετὰ θεῶν οἰκήσει. εἰσὶν γὰρ δή, ὥς φασιν οἱ περὶ τὰς τελετάς, ‘ναρθηκοφόροι.
Tradução livre: “Uma purificação de todas essas coisas [virtudes]: a temperança [sofrosine], a justiça [dikaiosine), a coragem (andreia) e até mesmo a própria sabedoria (phronesis), não seriam elas também, de certa forma, uma purificação?
E aqueles que instituíram para nós os ritos de iniciação não parecem ser homens tolos, mas, na verdade, pessoas que há muito sugerem, por meio de simbolismos, que aquele que chega ao Hades sem ser iniciado e sem ter participado dos ritos jazerá na lama, enquanto aquele que é purificado e iniciado, ao chegar ali, habitará com os deuses. Pois, de fato, como dizem aqueles que ensinam sobre os ritos, existem os ‘portadores do bastão de narthe.”
Nota 2: Os portadores do bastão de narthe (ναρθηκοφόροι) eram pessoas associadas aos Mistérios de Elêusis. Carregavam um bastão, o narthe, como um símbolo de sua participação e iniciação nos ritos em honra a Deméter.
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Imagem principal: Proserpina, de Dante Gabriel Rossetti, 1874, Tate Gallery, Londres.
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