Para Zileni, Rey e Alexandre Romariz

Não me desconsertes, pequeno. Trago um país dentro de mim. Lugar de cítaras e poemas, abelhas e cerejeiras em flor. Carrego-o na pálpebra entreaberta a filtrar toda luz.

Meu país me protege da dor que nos espreita. Ele me ensina, com paciência e calma, que há pequenos poemas que escapam dos livros e se aboletam nos costados do mundo. Leio-os na simplicidade das coisas cotidianas.

A verdade é que ando imensamente comovida por estes dias. Qualquer coisa me põe em estado líquido. Por isso sorvo cada gota que flui da boca farta da vida. Reidratar-me é preciso. Como nunca antes, presto atenção ao detalhe, ao momento, às pequenas coisas que dão prazer e emprestam consolo ao peito que se agita.

Aprendo diariamente a liturgia de molhar rosas e a solenidade de pôr especiarias na comida. Minha religião é a das coisas mínimas. Uma xícara de café pousada na mesa, flores vadias agitadas pelos ventos que fustigam as encostas do Pacífico, pássaros a se banhar nas poças d’água, meus vizinhos ajeitando potes de alpiste nas árvores, um corvo namoradeiro, pão de queijo e goiabada, a lembrança do meu pai torcendo pelo Botafogo, o gosto do bolo da minha mãe.  

Já não tenho outro lugar de estar. Ando estrangeira a vagar pelos cantos, escrevendo sobre caixas de mudança, mesmo quando estou na terra em que nasci. Não reclamo: o transitório é para todos (embora alguns não queiram admitir). Importante é o prazer secreto de olhar o horizonte, desejar ver o que está além das montanhas azulando no longe, fechar os olhos quando o vento passa revirando a saia das árvores e assistir ao ritmo acelerado da primavera fazendo brotar folhas tenras em galhos secos.

Acho graça enorme nas mensagens que chegam de outro hemisfério. Vozes a contar algo banal sobre aulas de italiano e filmes de Fellini, histórias de infância, filigranas do amor, vídeo de cachorros, a imagem dos finos cabelos da aniversariante e o sagrado momento em que o amigo agnóstico admite chorar ao ouvir as missas de Bach. Eli, Eli, lamá sabachtani? Não ainda. Não quando algo tão precioso e raro surge só para me fazer sentir vontade de dançar descalça, beber água de chuva e usar nas orelhas uns brincos de bolha de sabão.

No meu país não são válidos os sentidos. Carrego nas mãos luz dourada, ouço o aroma de chá preto no bule, sinto na língua o gosto das nuvens em céu claro, cheiro a voz dos meus filhos e vejo cor no piado dos passarinhos miúdos que ciscam na grama ainda molhada.

No centro do meu país há um templo capaz de me recompor. Nas paredes sóbrias ouve-se uma canção apenas murmurada, alguma coisa de Tagore, poeta das coisas que não se vê. Flauta doce de Krishna, raminhos de miosótis, um príncipe de Oscar Wilde, lagartas listradas sob um cobertor de pétalas e o ruído do arado do tempo a marcar o rosto da gente com sulcos tão fundos e histórias capazes de alumiar a noite ou de apagar os candeeiros.

Ao sair do meu templozinho, meus braços estão tomados por pilhas de livros e uso colares de memórias no pescoço.

Não me desconsertes, pois, pequeno. Noto que me testas a resistência e tentas arrastar meus amores para teus abismos. Afasta deles os teus dedos. Não desejes me tirar o que está fora do teu alcance: o país que trago dentro de mim. No meu lugar, hoje é Páscoa e algo insiste em reviver em mim. Acho que são os sonhos. Pois nestes dias quase tudo me põe no peito uma vontade insana de sonhar.

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Texto de Sonia Zaghetto

Pintura: La Ghirlandata, de Dante Gabriel Rossetti.