Liane é uma jovem mulher que mora na Europa há dez anos. Inteligente, bonita, bem-falante, é casada e tem dois filhos. A história que me contou se assemelha bastante ao que ocorre ainda hoje em milhares de casas brasileiras: machismo, abusos sexuais e psicológicos, sequelas emocionais. Felizmente, ela superou as marcas de uma educação castradora e de um relacionamento abusivo que durou sete anos. Nos áudios que me enviou, narrou sua história com objetividade, orgulhosa de ter ressignificado os dramas que viveu. Sua voz só embargou na última frase: “Obrigada por nos dar voz, Sonia. Obrigada. A nossa sociedade tem de mudar”. Liane tem razão. É urgente e necessário falar sobre esse assunto espinhoso a fim de que outras mulheres possam escapar desse drama. Ainda hoje, muitas delas continuam presas na teia de visões obscurantistas e cruéis impregnadas no ambiente familiar. (Sonia Zaghetto)
Eis a história de Liane:
“Não se nasce mulher, torna-se mulher” (Simone de Beauvoir)
“Gosto de pensar em mim como uma Fênix, ave mitológica que renasce das cinzas e reconstrói o próprio destino. Da fogueira saí mais inteira e forte do que jamais fui. Os sete anos em que estive em um relacionamento destrutivo foram o ponto de ruptura com uma vida na qual comportamentos abusivos estiveram presentes em vários momentos. Vou contar a história desde o princípio.
Fui criada em um ambiente muito machista. Não apenas o meu pai agia assim. Toda a minha estrutura familiar, inclusive a minha mãe, partilhava tal postura. Éramos três filhos educados de forma muito diferente no que se refere a sexo. Meu irmão era estimulado ao início precoce da vida sexual, enquanto de mim e da minha irmã era exigido um comportamento recatado. Enquanto tudo isso nos era aconselhado, eu era sexualmente abusada pelo dentista que atendia à nossa família.
Quando meu irmão tinha 14 anos de idade, papai pagou uma prostituta para que ele iniciasse sua vida sexual. Já eu e minha irmã só podíamos namorar dentro de casa, jamais deixadas a sós com os namorados.
Ao meu irmão se estimulava ter múltiplos relacionamentos e avançar sobre as filhas alheias. A mim e à minha irmã se dizia que mulher deveria ser bem comportada, pois “ninguém quer sair com vagabunda”. Diariamente ouvíamos frases como “fecha as pernas, menina”, “tem de se dar valor”, “dê-se ao respeito” e “não engorde: homem não gosta de mulher gorda”. A diferença de tratamento era muito evidente, mas nem nos passava pela cabeça contestar. A mentalidade dos nossos pais não iria mudar.
Minha mãe havia sido estudante em um colégio interno e meu pai apostou com um amigo que iria “conquistá-la”. Curioso como se usava essa palavra antigamente, conquistar, como se a mulher fosse um troféu.
Mamãe se casou virgem e engravidou na lua de mel. Uma vida de violência psicológica e humilhações, representadas pelas traições frequentes do meu pai. Ele era um mulherengo sedutor. Teve vários casos durante o casamento, inclusive com vizinhas. Era o tipo de homem que, diante da minha mãe, fazia comentários lascivos sobre outras mulheres. Não se continha: “Olha lá aquela gostosa”. Pior: influenciava o comportamento do meu irmão e até dos meus namorados, quando “ensinava” a eles que “homem fiel é homem babaca”.
Meu pai jamais me fez sentir protegida. Quando contei a ele que o marido da minha irmã andava levantando de madrugada para me espiar dormir, ele passou a fazer gozação com o genro, chamando-o de “lanterninha”, pois meu cunhado usava uma lanterna para me ver. A situação só foi resolvida quando meu cunhado me viu beijando um rapaz e teve um ataque de ciúmes. O casamento acabou. Um dos mantras que me foram repetidos por anos a fio era o de que homens têm desejos; as mulheres, não.
Um dos meus arrependimentos é ter implorado para meus pais não se separarem. Mas eu só tinha doze anos. Eu nada sabia. Quando minha mãe morreu de câncer de mama, com apenas 49 anos, eu sabia que o corpo dela já não aguentava mais o sofrimento moral que a seguia há tantos anos. Encontramos no diário dela uma informação adicional: havia contratado uma garota de programa para satisfazer as “necessidades” do meu pai. Ao ler aquilo, eu só conseguia me perguntar como papai conseguia fazer sexo com outra mulher enquanto mamãe morria.
Este foi o ambiente em que cresci.
Conheci Rafael no primeiro ano de faculdade. No princípio, tudo era perfeito. Só aos poucos ele foi mostrando o ciúme que acabou por intoxicar o nosso relacionamento.
Eu tinha 20 anos e, durante o primeiro ano de namoro, a minha mãe faleceu. Meu mundo desmoronou e Rafael me apoiou. Ficamos muito próximos.
Com o tempo, Rafael passou a se revelar ciumento e possessivo. Eu não podia usar roupas curtas, decotes ou ter amizades com homens. Ele reforçou as velhas crenças machistas que eu já conhecia: homem não tem amizade com mulher. Na ânsia de me afastar das outras pessoas, destruiu meu relacionamento com um primo muito próximo, com a minha melhor amiga e até com os meus irmãos. Meu sofrimento emocional se agravou.
Nunca me agrediu fisicamente no sentido de me espancar, mas não foram poucas as vezes que transei com ele sem qualquer vontade. Nesses instantes, o peso da criação patriarcal desabava sobre mim. Eu me sentia obrigada ao sexo. A responsabilidade pelo relacionamento era minha. Eu transava porque não podia perdê-lo. E sofria por isso.
O ciúme não só tornou Rafael completamente obsessivo, mas também me contagiou. Aos poucos, adotei o mesmo comportamento. Enlouqueci igual a ele, não confiava em ninguém e passei a achar que toda mulher estava interessada no meu namorado. Não demorou muito e eu acabei por também afastar outras mulheres da vida dele. Nós dois nos boicotávamos e nos vigiávamos, tínhamos as senhas dos e-mails um do outro, tudo muito ruim e desgastante.
Ele me castrou e, para ser sincera, até hoje há uma cicatriz gigante na minha alma: como me deixei ser engolida e anulada?
Em algum momento, ele parou de me beijar. Dizia que não conseguia e me culpava. Garantia que era trauma do início do namoro, quando eu me recusava a dar beijos e “amassos”em público.
Eu percebi que o relacionamento estava péssimo, mas insisti. Inventei para mim mesma uma condição: Rafael conheceu a minha mãe. Eu iria casar com uma pessoa que conheceu a minha mãe.
Meu namorado tornou-se mais violento. Sem razão alguma além de ciúmes infundados, espancou um homem na rua. Minha família o odiava e nossa relação se deteriorou profundamente. Eu me submetia sem reclamar.
Nessa época, fiquei atraída por um homem do meu trabalho. Era recíproco, mas não tive coragem. Acreditava que o problema estava em mim e não se resolveria mudando de parceiro. Mas meu corpo não se enganou. O relacionamento estava tão difícil que desenvolvi uma alergia ao sêmen meu namorado. Meu corpo rejeitava o corpo dele.
A família de Rafael gostava de mim, mas percebia que o relacionamento fazia mal a nós dois. Tudo piorou quando ele iniciou um curso e nas aulas conheceu uma moça. Notei que os dois estavam se aproximando e comecei a me culpar. Eu estava mais gordinha e acreditei que por isso Rafael se desinteressou de mim.
Decidi ir à luta. Fiz dieta, emagreci e fiz um book sensual. Comecei a ter um comportamento sexualmente mais ousado. Organizei uma viagem a dois e nela dei o álbum de fotos para ele. A reação me apanhou de surpresa. Rafael ficou com muita raiva, perguntou onde eu havia tirado as fotos, me humilhou e disse que minhas fotografias poderiam ser vistas e compartilhadas por desconhecidos.
Interessado na garota do curso, ali mesmo ele propôs terminar o namoro. Alegou que éramos muito novos. Concordei. E assim tudo se acabou, após sete anos nos quais tive três úlceras e uma série de outros problemas de saúde.
Eu me enterrei na minha casa. A vida de todo mundo tinha seguido. Até meu pai havia casado de novo. Só restava eu. Eu me sentia velha e cansada. Comprei vários cachorros para suprir minha solidão.
A mãe de Rafael veio ao meu encontro. Ao me ver chorosa e abatida, tentou me animar dizendo: “Enquanto você está chorando, ele está com a nova namorada. E cheio de entusiasmo”. A garota havia deixado o noivo e iniciara um romance com o meu ex.
Passei uma semana carpindo a dor, mas decidi reagir.
Fiz um período sabático de seis meses na França. Fui para o contra padrão. Vivi tudo o que antes me havia sido negado, tive vários parceiros e nenhum relacionamento duradouro. Minha irmã espalhava para os amigos que eu havia me tornado “galinha”, pensamento herdado da nossa cultura machista.
Hoje – após anos de terapia – vejo que o abuso pode ser sutil e disfarçado. Demora-se a perceber, especialmente quando se é alvo de pesados condicionamentos desde a infância.
Passei sete anos com um homem que nada valia e trouxe danos imensos à minha vida. Aceitei isso porque os conceitos errôneos com que fui criada estavam impregnados em mim.
Após a viagem à França, passei um longo tempo sem namorado. Sozinha, eu me reconstruía. Estava livre quando conheci meu marido, um homem inteiramente diferente, com quem tenho um relacionamento saudável e enriquecedor. Saímos do Brasil casamos e hoje tenho uma certeza inabalável: não quero que meus filhos sejam criados com os condicionamentos que me trouxeram tantos sofrimentos”.
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“Abusadas” é uma série criada pela jornalista Sonia Zaghetto e pelo psiquiatra Guilherme Spadini. Trata de pessoas vítimas de abusos físicos, psicológicos e financeiros por parte dos parceiros. A série deverá ser transformada num livro em 2022.
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A arte traduz a vida
A arte consegue traduzir, com agridoce poesia, a trajetória humana e suas tempestuosas lutas. Trago para cá e dedico à “Liane” (o nome foi trocado, assim como alguns detalhes e locais que identificariam os personagens) uma ária que está no terceiro ato da ópera Andrea Chénier, de Umberto Giordano, Maddalena di Coigny está diante de Gérard. Conta que sua mãe está morta, sua casa queimada e ela vagou por caminhos sombrios, ameaçada por fome e miséria, perseguida de perto pelo perigo. Em meio a essa dor veio até Maddalena uma voz cheia de harmonia, que lhe trouxe conforto: “Eu sou o amor”.
Leia abaixo a letra traduzida para o português e ouça a ária, cantada pela soprano Maria Callas.
Minha mãe foi morta por eles
Na porta do meu quarto
Morreu me salvando
Tarde da noite
Eu vagava com Bersi [a criada]
Quando de repente
Um brilho pálido piscou
E iluminou a rua escura à frente dos meus passos
Olhei…
Queimava a casa em que nasci
Eu estava sozinha
Cercada pelo nada.
Em torno de mim fome e miséria
A necessidade, o perigo
Fiquei doente
E Bersi, boa e pura,
Vendeu sua beleza
Para me salvar.
Eu trago infortúnio para aqueles que me amam.
Foi em meio àquele horror
Que me chegou o amor
Uma voz cheia de harmonia murmurou:
“Você deve viver!
Eu sou a vida
Nos meus olhos está o seu céu
Você não está sozinha
Eu recolho suas lágrimas
Eu caminharei ao seu lado e lhe apoiarei
Sorria e tenha esperança.
Eu sou Amor.
Tudo ao redor é sangue e lama?
Eu sou divino!
Eu posso fazer você esquecer.
Eu sou o deus que desce ao mundo
para fazer da Terra um paraíso
Eu sou o Amor.
O Amor “
Belíssimo texto Sônia!
Essa estória se assemelha a de muitas mulheres. Infelizmente muitas de nós vivemos ainda hoje em uma sociedade machista ,cheia de regras castradoras para o sexo feminino. Por algum momento me vi na situação da Liane. Fico feliz que apesar das marcas profundas e de todo o sofrimento, ela conseguiu se refazer e ser feliz. Muito obrigada por nos brindar com Maria Callas no final desse texto. Estupendo! 😘
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Oi Sonia! Confesso que quando comecei a ler, pela manhã, não me senti bem, parei. Um misto de tristeza e impotência. Retomei a leitura somente à noite. Que bom que Liane conseguiu sair deste relacionamento e recomeçar. Nem sempre as coisas se encaminham para um desfecho favorável à vítima, sem falar no trauma que perfura a alma e finca sentimentos nada agradáveis. Obrigada pelo texto.
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Oi Sônia. Tenho uma história de vida muito parecida com a sua. Fui lendo e me vendo no passado. Fico feliz que você tenha encontrado alguém que te faça feliz. Quanto a mim? Depois de tantas tentativas descobri que amo a minha própria companhia e que me tornei muito exigente para encontrar a essa altura da vida alguém que me faça mais feliz que sou sozinha! Bjos
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