Em 29 de novembro de 2001, morreu George Harrison. Morreu é modo de dizer.

Dos quatro Beatles, o guitarrista teve a trajetória mais espetacular. Vindo de uma família humilde, aos 17 anos tornou-se uma das maiores celebridades do planeta. Entrou no túnel de delícias do mundo material com sua carteirinha de milionário aos 20 anos e emergiu do outro lado como um homem que resumia seu propósito na vida a uma busca incansável para responder a três perguntas: quem sou eu, por que estou no mundo e para onde vou.

É dele o melhor álbum independente de um ex-Beatle. All Things Must Pass é uma obra-prima, em que funde letras filosóficas com música sofisticada. Transcendental é a palavra adequada para definir um trabalho que tem joias como Isn’t It a Pity e Beware of Darkness.

Com o fim dos Beatles, finalmente George pôde gravar as próprias músicas. Tinha na gaveta tantas canções rejeitadas que pôde fazer um álbum triplo, louvado pela crítica e imediatamente alçado pelo público à categoria de lendário. Grande parte dessas canções refinadas havia sido alvo de zombaria ou desprezo e substituída por peças de qualidade bastante inferior.

Durante toda a sua jornada, George apostou na postura discreta, no cultivo do espírito, no desapego e nas ações humanitárias. Sobreviveu a uma tentativa de assassinato, ao fim de um casamento e aos desregramentos que a fama lhe trouxe. Aos poucos, suas canções se tornaram celebrações da vida, com suas flutuações.

Os gestos de solidariedade sempre foram abundantes. Do financiamento de filmes do grupo Monty Python aos concertos beneficientes para socorrer a população de Bangladesh, abatida por fome, inundações, genocídio e doenças. Harrison foi o primeiro a organizar um mega show a fim de arrecadar dinheiro para caridade. Realizado em agosto de 1971, no Madison Square Garden, em Nova York, o Concerto para Bangladesh rendeu um álbum e um documentário que destinaram ao país asiático mais de US$12 milhões, via UNICEF.

O chamado Beatle quieto era, em verdade, um inconformado que se desafiava constantemente e tinha, além do talento excepcional como instrumentista e compositor, um humor ácido que só os anos de meditação domaram. Na época dos Beatles, compôs canções irônicas (Piggies, I, me, mine), delicadezas de amor (Something) e hinos como a grandiosa While my Guitar gently weeps e Here comes the sun. Abriu-se à cultura indiana e apresentou ao ocidente um dos maiores citaristas clássicos, Ravi Shankar. O álbum que os dois gravaram, Chants of India, traz cantos sagrados em sânscrito e é uma das preciosidades da carreira de Harrison.

No documentário “Get Back”, de Peter Jackson, vê-se George deixando os Beatles em janeiro de 1969, aborrecido com Paul McCartney e John Lennon. No mesmo dia ele escreveu a música Wah-wah“, na qual traduz sua frustração: “Você fez de mim uma estrela tão grande, mas não me vê chorar, não me ouve suspirando”.

Numa de suas últimas entrevistas, comentou a rapidez com que a vida passou: “Não levou muito tempo entre os 17 e os 57 anos”.

Ringo Starr e Paul McCartney foram visitá-lo pouco antes de morrer. Emocionados, os dois lembraram a coragem, o bom humor e a serenidade com que o amigo lidou com o diagnóstico de câncer no cérebro e no pulmão. Ringo chorou ao narrar a despedida: “Eu estava saindo para Boston porque minha filha tinha um tumor no cérebro. E disse: Bem, você sabe, eu tenho que ir e as últimas palavras que o ouvi dizer foram: Você quer que eu vá com você? Esse era o lado incrível de George”.

A brincadeira inocente foi sua derradeira mensagem de força e alegria ao amigo. Digno de quem escreveu Art of dying.

O testamento musical de Harrison foi o álbum póstumo Brainwashed. Nele, a voz frágil sussurra os versos de Raising Sun: “No sol que nasce você pode sentir sua vida começando, o universo brincando no seu DNA. Você tem um bilhão de anos”.

Para ilustrar este texto escolhi uma foto de George Harrison aos 25 anos, na última apresentação pública dos Beatles. É como ele aparece em “Get Back”, abraçado à sua fender telecaster, despenteado, vestindo casaco estiloso e pantalonas verdes. Não havia ninguém mais charmoso naquele telhado.(Crédito da foto: Apple Corps)

Clique para ler um texto de Sonia Zaghetto inspirado em George Harrison e que consta do livro Crônicas do Vento de Abril

Assista aqui a um documentário sobre George Harrison (em inglês)

Assista aqui ao vídeo dos preparativos para o Concert for George, que homenageou George Harrison um ano após a morte do músico. Organizado por Eric Clapton, o concerto foi divido em duas partes: oriental e ocidental. A filha de Ravi Shankar, a citarista Anoushka, conduziu a orquestra de músicos indianos. Os amigos de George – incluindo Paul McCartney e Ringo Starr – fizeram uma apresentação memorável.

Sete canções de George Harrison

While my Guitar Gently Weeps (do Anthology 4)

My Sweet Lord

Isn’t it a Pity

Give me love (Give me peace on Earth)

Beware of Darkness

That’s all

Who can see it

While my Guitar Gently Weeps (bônus – Vídeo da versão animada na página dos Beatles no YouTube)