Um dia comecei a escrever, sem saber que havia me acorrentado para o resto da vida a um mestre nobre, porém impiedoso. Quando Deus lhe dá um dom, também lhe entrega um chicote; e o chicote é destinado exclusivamente à autoflagelação… Estou aqui, sozinho na minha loucura sombria, solitário com as minhas cartas de baralho – e, claro, o chicote que Deus me deu. _ Truman Capote
Por que escrevo? Para que toda essa vida que existe em mim possa te alcançar?
Eu escrevo porque preciso. Porque algo brota dentro do peito e é maior que eu. Um território santo, secreto, onde sou capaz de criar a vida e destruí-la. Gentes, bichos árvores e as próprias estrelas ao alcance da mão. Escrever é experimentar – por brevíssimos instantes – o sabor da divindade. É embriagador e atemorizante. Um poder absoluto que esmaga e hipnotiza.
Grandes escritores já tentaram responder a essa pergunta. George Orwell, inclusive, tem um livro com esse título. Cada autor oferece uma visão diferente. Não há fórmula exata, pois a matéria vai além do mundo objetivo. Hemingway diz que escrever é sangrar; mas eu me inclino a concordar com Truman Capote no lendário prefácio de Music for Chameleons, no qual fala de um misto de racionalidade, persistência, sacrifício e dom, pois é necessária uma certa dose de dom, não nos enganemos.
Entretanto, a esse dom vem atrelado um alto preço: o chicote mencionado por Capote e destinado unicamente à autoflagelação. Um chicote que fere incessantemente o corpo e o espírito do escritor. Cruz e delícia, diria Francesco Piave.
Há quem queira escrever para ser famoso. Esses são cativos dos concursos, da fama enganadora das redes sociais, da opinião alheia. Desejam o maior número possível de livros publicados. É uma opção válida e que não me diz respeito – por isso não julgo. Entretanto, claramente não é o meu caminho.
O que escolhi é um caminho de construção, de funda elaboração, de trabalho permanente, de respeito à literatura. Esta é (ou deveria ser) espaço sagrado onde reina a liberdade. Aproximo-me do mundo de um escritor sem deixar que as miudezas mundanas ou a minhas convicções particulares contaminem a alegria de conhecer uma obra nova. Leio a crueza sexual de Henry Miller com a mesma devoção que dedico à santificada prosa de Tolstoi. Naquele terreno único da página vale a criação do autor. Ali está uma alma desnudada, uma voz que – no caso dos grandes escritores – vencerá a barreira dos milênios e será ouvida quando tudo o que hoje vive se tornar pó.
Por isso sou contra essa excrescência chamada “leitores sensíveis”. Um arranjo exótico, dado a ares de modernidade e destinado a pôr algemas na literatura, amansá-la e adequá-la ao paladar delicado de pessoas que paradoxalmente vivem no Twitter a esmagar os crânios de adversários e liderar linchamentos, alheios a qualquer sensibilidade. Deixem-nos em paz, a nós, os que escrevemos. Que o público decida o que deseja ler, sem que um grupo de tutores tenha de fazer censura prévia. E se decidir que nossa literatura é dura demais, é grosseira, chocante e “gatilho”, paciência. Iremos para o ostracismo, em boa companhia. Há muita gente interessante habitando o círculo dos cancelados. Literatura exige coragem.
Há mais de 40 anos escrevo, desde que era criança. Sempre foi um ofício solitário e um grande mergulho em um mundo desconhecido. Lembro do quintal da minha casa, em tardes quentes, com as folhas de papel cobertas de desenhos e histórias. Elas sempre estiveram lá, as histórias. Ainda hoje, quando ponho as mãos sobre o teclado, acontece a mágica que ocorria quando a caneta pousava sobre o papel: desfaz-se o mundo real e surgem silhuetas, nomes, tramas e sentimentos. Chegam suavemente ou impregnados de violência, suor e paixão. Têm vida própria e pulsante.
São aqueles “bim! bim! bim!” de que falava Bukowski: algo ensolarado, pleno de ritmo e de vida, encharcado de um sumo delicioso capaz de manter o leitor ansioso para prosseguir. Uma força que martela e exige habitar a página. Se você não escrever, vai lhe sufocar, envenenar seu sangue, perturbar a vida e gritar até rasgar o seu peito (é por dizer coisas assim que se acredita ser louca uma boa parte dos artistas).
Pessoalmente, sinto tudo isso. É o que faz com que publicar seja secundário. Escrever é o mais importante. Nutro por cada personagem – mesmo os perversos, os desabridos, os atrapalhados, os egoístas e os prestidigitadores – aquilo que aprendi nas páginas de Tchekhov, Shakespeare, Steinbeck e tantos outros: um olhar compreensivo sobre a alma humana, capaz de identificar sua beleza e altos voos, mas também suas mediocridades, sua pequenez e maldade, e traduzi-las todas como parte da nossa natureza.
Eis a razão porque Tchekhov me fascina. Há nele uma grande compaixão pela nossa miséria e dor. Ele as vê. A sua literatura não é de pêssegos e rosas. Nada de uma realidade artificial, criada para entreter adultos com alma infantilizada. Tchekhov não nos oferece redenção. Não, não. Ele é um escavador. Vai retirando devagarzinho a pele, expondo o que está oculto, desnudando pacientemente os tecidos, deixando à mostra o rubro sangue que preenche nossas veias em esplêndido espetáculo de vida. Então retira um tumor, com seu bisturi de médico e poeta. E o tumor também somos nós.
O que faremos com a descoberta não é tarefa da arte.
Escrever também serve para que todo esse conjunto orgânico – tumores incluídos – possa te alcançar, leitor.
Bim!
***
Imagem: Writer (Escritor). Pawel Kuczynski.
Este texto é dedicado a uma poetisa de João Pessoa. Águeda Magalhães me enviou o seu livro “A Impermanência do Ser”, escrito enquanto ela se recuperava de três cirurgias, em meio a dores, medos e desconfortos. Após um aneurisma abdominal e um câncer, aos 75 anos de idade, Águeda publicou o tão sonhado primeiro livro. Dele, retirei o poema-título, “A Impermanência do Ser”, bastante adequado ao tema do texto de hoje e que você lê abaixo. De uma longa conversa virtual, extraí esta frase de Águeda: “Como sou velha em idade e nova neste ofício, tenho, se o tempo permitir, muito que aprender”. Todos temos, cara Águeda, pois com o dom vem o chicote e ele jamais cessa de nos flagelar. Ele demanda que estejamos em constante aprendizado e aprimoramento.
A Impermanência do Ser
Sob o fardo das incertezas,
o corpo vacila
a alma emudece.
Experimento a vertigem
de quem contempla o abismo,
inexpugnável,
da fragilidade humana.
O vento impetuoso
quebra as vidraças
invade o quarto.
com seu riso de açoite,
faz voar papéis sobre a cama
desfolhando palavras
que, infensas ao toque,
levitam
abandonando o poema
quase pronto, quase pronto…
Tantos dias,
cuidadosamente,
esculpindo
com fios de seda
a poesia da vida.
tantas noites,
tantas…
e de repente,
o susto
o espanto.
Não mais escuto
o bulício das rimas
a procura dos versos,
apenas,
a sinfonia branca do silêncio
a impor novos ritmos.
Onde encontrar as estrofes perdidas?
Temo que,
sorrateiras,
sem o agasalho da inspiração,
mudas de espanto
deslizem,
indefesas,
nas geleiras do medo
e não queiram mais acender
o poema,
canto nublado,
arfando
em meu peito,
ao ritmo de cada manhã
que nasce,
reinaugurando a chama
redimindo a luz…
Mais um dia,
subjuga as sombras!
Mais um dia:
que seja farto,
por ser único;
que seja belo,
por ser breve!
Lindo seu texto, Sonia, e magnífico o poema da Águeda Magalhães. Tudo muito encantador, um espaço de magia, de perplexidade. Que alegria!
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Muito obrigada, querida Mariza. Um abraço carinhoso.
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Sônia, você sempre nos faz refletir, não quero eu ser um desses citados “adultos infantilizados”, dá medo! Tempos duros com todos os quê têm alma inquieta. Abraços
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