Life changes fast.

Life changes in the instant.

You sit down to dinner and life as you know it ends.

(Joan Didion. The Year of Magical Thinking)

A vida muda rápido.

A vida muda num instante.

Você se senta para jantar e a vida como você conhece termina.

Ontem, em meio a uma tarde fria e nublada pelas cenas de uma guerra insana, lembrei das frases com que Joan Didion inicia o romance O Ano do Pensamento Mágico, no qual a escritora narra a morte do marido, John Gregory Dunne, e a doença fatal da única filha.

São sentenças que fazem estremecer, por sua carga de verdade implacável. Num desses instantes banais, em que se está preparando uma salada para o jantar, o mundo conhecido se desvanece. A existência, fragilíssima e delicada, evapora. Abre-se um portal para o desconhecido, com suas bocas de abismo.

Pode acontecer na volta do trabalho, ao se ouvir no rádio do carro que um governante vizinho decidiu destruir o parque de diversões, o prédio, a igrejinha do bairro e o cinema da sua infância. No dia seguinte já não haverá a busca pela nova babá, a padaria na esquina ou a cerveja com os amigos. Já não existirá trabalho, brinquedos espalhados pela casa ou a decisão de  comer pipoca assistindo séries de TV. Poderá não haver o seu país. A vida como você conhecia desapareceu. Num piscar de olhos.  

Embora o Instagram insista em contrariar os céticos ao desvelar um mundo de corpos perfeitos, filtros apagadores de imperfeições e paisagens estonteantes, a realidade se encarrega de nos abrir os olhos para o trivial sem retoques. Espelho não tem filtro, o corpo fala de um tempo que escoa  velozmente. Nada consegue paralisar a roda voraz, devoradora – a que porá um manto de esquecimento sobre nossas vidas pequeninas.

E o que fazer quando o tempo, a doença, o imprevisto, a morte ou a guerra baterem à porta, exigindo seu tributo?

Qualquer adulto sabe: a dor e a perda fazem parte do jogo iniciado antes de chegarmos ao mundo. Portanto, a resposta é a de Guimarães Rosa: a vida exige coragem.

Coragem. Sete letras. Não significa que vai tornar o mundo um lugar melhor. Vai fazer a diferença apenas para você – e é o suficiente. Sete letras para encarar a vida de frente, sem ilusões.

Coragem para tomar posição quando um ato vil se desenrolar diante de você. Nada é pequeno demais que dispense a firmeza na tomada de posição. Um homem injustiçado ou um país invadido merecem igualmente solidariedade, respeito, apoio. Requer coragem não se vender às conveniências, não fechar os olhos ao sofrimento alheio, não arrumar desculpas para os que usam o seu poder para esmagar os outros – seja micro ou macro poder.  Que o digam os mais de três mil russos presos por protestarem contra a guerra.

Acredite-me: seu café terá gosto azedo todas as vezes que você se acovardar.

Estar vivo é um desafio, mas também oportunidade, gema rara. Neste imenso planeta, decorado por belezas e recheado de surpresas, ainda respiramos. Assim, apanhe a vida com as duas mãos, como uma fruta madura. Sinta o seu aroma, morda-a gentilmente, sentindo o sumo escorrer entre as gengivas, tocando a língua, enchendo a boca de sabor. Desfrute do instante presente. Ele é fugaz.

Não viva apenas para cumprir tabela, para suportar os dias entre queixas e ressentimento. Aprecie a caminhada, sabendo por antecipação que a estrada é acidentada. Prepare-se para ela. Veja a multiplicidade de cenários e momentos – pedras, grandes árvores, construções novas e antigas, arbustos mirrados, ruas feias, flores coloridas (algumas são venenosas, atenção), cascalho que fere o pé e macia grama. Guarde cada imagem nas retinas – cansadas ou não. É o seu patrimônio.

Cumpra o seu dever em vez do alheio. Faça as suas tarefas com paixão avassaladora. Não para ser aplaudido, elogiado, bajulado. Faça-as por você, para seu prazer ou realização – enquanto pode.

Ame muito, todos os dias, mas sabendo que nem sempre é recíproco; que ingratidão existe, que a impermanência é a marca das horas. Qualquer um pode partir, a qualquer instante. Por mil razões. Revista-se de coragem para vê-los ir sem se deixar destruir.

Acrescente algum risco ao cotidiano. Pode custar feridas emocionais ou ossos quebrados (ambos são curáveis; abrace o aprendizado), mas pode ser um treinamento para a hora mais amarga: a de defender seu cantinho no mundo, despedir-se dos seus filhos, dar adeus ao seu modo de vida.

As incertezas da existência vão lhe demandar sacrifícios pessoais por um bem ou valor maior. Alguns vão moer seu corpo e lhe restará apenas um espírito inquebrantável. Talvez seja algo patético e desesperado, como pôr uma bicicleta ou o próprio corpo para impedir a passagem de um tanque de guerra. Ou, numa ilha isolada, ouvir a ordem de rendição vinda de um navio militar e murmurar devagar “Então é isto…”, sabendo que é o seu fim. Como Leônidas de Esparta, cercado nas Termópilas por um exército muito maior, ter a coragem de reinventar na própria língua uma versão do μολὼν λαβέ grego.

Mesmo que tudo – absolutamente tudo – se acabe ali.

Assim, pegue essa sua alma tão grande e aproveite a vida aqui e agora. Faça uma festa particular, com os seus talentos mínimos ou grandiosos, no seu cotidiano prosaico. Seus bordados, pinturas, escritos, desenhos, cantigas, comidas cheirosas, seu jardinzinho magro, sua dança desengonçada, seu café num bule simples. Dia virá em que tudo isso será memória, terá voltado ao pó. Haverá apenas silêncio.

Antes que tal aconteça, beba duas taças de coragem e aproveite o seu dia. Beba-as até o fim e estale a língua antes de dormir.

Mολὼν λαβέ.

O que é Mολὼν λαβέ?

Mολὼν λαβέ (molón labé) é uma expressão grega clássica usada pelo rei Leônidas na batalha das Termópilas e citada por Plutarco. Quando Xerxes, rei da Pérsia, disse aos espartanos, em menor número, que deveriam entregar suas armas e se render ao exército persa (que era infinitamente maior), Leônidas respondeu com essa expressão: μολὼν λαβέ, “Venha tomá-las!”. É uma expressão de desafio, de quem não se curva aos poderosos.

A batalha das Termópilas ocorreu no ano 480 a.C..

Termópilas (Portas Quentes) é um desfiladeiro estreito. Nele se encontraram o formidável exército de Xerxes, o rei da Pérsia, e um grupo de 300 soldados espartanos comandados pelo rei de Esparta, Leônidas. Estes tinham a missão de retardar ao máximo o avanço persa sobre Atenas, dando tempo para que a cidade fosse evacuada e se preparasse para a defesa.

O grupo de Leônidas resistiu bravamente por dois dias até que, após a traição de um dos gregos, os persas descobriram uma passagem alternativa e encurralaram os espartanos, dizimando-os.

A vitória persa nas Termópilas não durou. O sacrifício dos soldados espartanos atrasou os persas o suficiente para que a estratégia ateniense surtisse efeito. Termópilas tornou-se um símbolo do sacrifício pessoal por um bem maior.

Todas as cidades da Grécia haviam se mobilizado na campanha contra a invasão persa. O plano era construir uma grande armada para fazer frente aos navios de Xerxes, além de evacuar a população para as ilhas, deixando a região sem suprimentos. Para isso, era preciso ganhar tempo, atrasando o avanço persa por terra – essa era a tarefa dos espartanos.

Entretanto, Esparta, pela lei, não poderia guerrear naquele mês. Era agosto, mês do festival da Carneia e, naquele ano, de Trégua Olímpica. Por isso, o exército espartano estava proibido de sair da cidade. A Grécia só poderia contar com os seus mais valentes soldados depois de duas semanas, quando seria tarde demais

Leônidas resolveu defender a Grécia levando apenas a sua guarda pessoal (trezentos homens) e um contingente de sete mil soldados de cidades próximas às Termópilas. Lá, planejava resistir o quanto fosse possível. Sabia que não voltaria vivo, pois o Oráculo de Delfos vaticinara:

“Seu destino, ó habitantes dos amplos campos de Esparta, é ver sua grande e famosa cidade destruída pelos persas. Ou isso, ou todos aqueles que habitam Esparta deverão chorar a morte de um rei, nascido da linhagem de Hércules”.

Nas Termópilas, a batalha foi feroz. A tática e as técnicas guerreiras superiores dos espartanos prevaleceram sobre os persas nos embates frontais. Com a pilha de cadáveres dos soldados da linha de frente persa – a maioria recrutas – foi formada uma muralha, defendendo as posições gregas.

Mas o destino dos espartanos estava selado. Quando as notícias de que os persas haviam descoberto como cercar os gregos, Leônidas entendeu que era o fim. Decidiu continuar ali, mas antes ordenou a retirada dos demais soldados não-espartanos.

Quando os persas propuseram que os espartanos entregassem suas armas, a resposta foi μολὼν λαβέ (Venham tomá-las!). Xerxes os avisou então que disparariam tantas flechas que o dia escureceria. A resposta de Leonidas foi: “Muito bem, lutaremos à sombra”.

Leonidas e os trezentos morreram nas Termópilas.

Dois mil e quinhentos anos depois, ainda lembramos deles. Por sua coragem.